O cidadão comum que acompanha minimamente o que se passa no mundo tem sempre uma pergunta a que não consegue dar resposta cabal: por que razão há tanta gente que vota em partidos de extrema-direita, que não são de confiança e representam um perigo para a democracia, tendo em vista as lições da história e as personalidades boçais que quase sempre os encabeçam?
Como é possível haver quem apoie o desmantelamento do estado social, a perseguição aos refugiados, a expulsão dos migrantes, a misoginia, o racismo e a xenofobia, a destruição do planeta e outras pautas sectárias?
Em nome de que princípio parte significativa do eleitorado, agora seduzido pelo canto da sereia populista, deixou de exigir aos seus novos ídolos políticos um mínimo de decência, decoro, seriedade e tento na língua? E por que se atravessam a defendê-los, perdendo eles próprios o autocontrolo e entrando em ilícitos cada vez mais graves, caindo mesmo em comportamentos criminais? Onésimo Teotónio de Almeida – que vive na América há mais de meio século – diz que não consegue explicar o fenómeno, mesmo tendo procurado respostas sobretudo em autores republicanos.
Chamo a isso a síndrome de Barrabás.
A estória da paixão de Cristo inclui uma personagem sui generis, o tipo do criminoso temível que toda a gente quer ver longe ou atrás das grades. Barrabás era um marginal do sul da Judeia, de quem nem o nome se aproveitava (do aramaico: Bar Abbas, “filho do pai”)… Pertencia a um grupo a que hoje chamaríamos terrorista, e que normalmente atacava as legiões de soldados romanos sempre que podia.
Terá sido preso num desses ataques perpetrado em Cafarnaum, que provocou baixas entre a soldadesca. O evangelista Marcos diz que nesse ataque Barrabás terá assassinado um soldado: “E havia um chamado Barrabás, que, preso com outros amotinados, tinha num motim cometido uma morte” (15:7).
Os textos neotestamentários colocam Jesus de Nazaré perante Pôncio Pilatos, o governador da província, acusado de sacrilégio pelo poder de Templo, porém o governador não encontrou motivos para o condenar, depois de o ter interrogado. Tinha perfeita consciência de que o nazareno estava a ser perseguido apenas por inveja dos líderes sacerdotais: “Porque ele bem sabia que por inveja os principais dos sacerdotes o tinham entregado” (Marcos 15:10).
Mas como a populaça tinha sido excitada contra Jesus pelo sinédrio, e exigia a sua crucificação, Pilatos mandou açoitá-lo e apresentou-o ao povo (“Ecce homo”), exausto e coberto de sangue, procurando acalmar as hostes, tentando assim suscitar alguma misericórdia.
Como a coisa não resultou, o governador romano jogou uma última cartada. Mandou chamar o ladrão e assassino Barrabás, deixando que o povo escolhesse a quem deveria indultar, ele ou o nazareno. Segundo a tradição na Pessach (páscoa judaica) costumava soltar-se um preso, mas o povo rejeitou a libertação de Jesus, voltando a exigir a sua condenação à morte por crucificação, e pediu que Pilatos soltasse o criminoso.
Olhando para a fotografia que Trump tirou na esquadra de polícia da Geórgia e para a postura de Bolsonaro, Mussolini ou de outros populistas, as expressões suscitam medo por sugerirem ódio e agressividade. Só podemos entender o voto nos populistas como uma manifestação da síndrome de Barrabás.
Um pouco por todo o mundo as pessoas estão cansadas dos jogos políticos, da corrupção, da mentira e resolvem votar contra o sistema, mesmo que isso possa equivaler a saltar da frigideira para o fogo. Em Jerusalém sabiam que um Barrabás à solta representava correr mais riscos, mas ao menos destilavam o ódio contra alguém que, sendo inocente, não lhes garantia a luta contra o invasor romano.
Hoje, sabem que um extremista de direita (ou de esquerda) representa também mais riscos, mas ainda assim vão destilando abertamente ódio contra uma sociedade injusta e penalizadora. E aproveitam para dar voz ao pior que o ser humano tem dentro de si, num misto de desabafo e frustração numa espécie de catarse destrutiva e irracional.
Eis por que motivo Trump dizia à boca cheia que, mesmo que cometesse um homicídio na 5ª. Avenida, em vez de ser preso seria um herói, levado em ombros por uma multidão de indefectíveis. E não é que o novo Barrabás tinha razão?
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