Habituámo-nos à artificialidade dos calendários. A convenção de dividir o tempo em unidades, desde o segundo ao ano (e mais), passando pela hora, dia, semana e mês confere-nos uma certa ilusão de que afinal somos capazes de controlar a vida que se vive. Nada mais errado. Como sabemos o tempo é um continuum, seja na perspectiva linear do Ocidente, seja na concepção circular do Oriente.
O apóstolo Tiago alertou mesmo para não dizermos que amanhã iremos aqui ou ali, mas que se Deus quiser iremos, enfatizando assim a condicionalidade da vida e a sua sujeição ao imponderável, ao desconhecido e ao que não se pode antecipar: “Eia agora vós, que dizeis: Hoje, ou amanhã, iremos a tal cidade, e lá passaremos um ano, e contrataremos, e ganharemos. Digo-vos que não sabeis o que acontecerá amanhã. Porque, que é a vossa vida? É um vapor que aparece por um pouco, e depois se desvanece. Em lugar do que devíeis dizer: Se o Senhor quiser, e se vivermos, faremos isto ou aquilo” (Tiago 4:13-15). O apóstolo chegou mesmo a classificar tais afirmações como uma evidência de presunção. De facto ninguém pode controlar o dia que ainda não chegou, nem sequer o momento que se segue.
Outro tipo de vício é o de quem reflecte sobre o tempo vivido, quando escorrega para o saudosismo, que não é senão outra armadilha. É tolice viver na ilusão de que o passado é que foi bom e que o futuro não presta. Já o rei Salomão alertava para tal: “Nunca digas: Por que foram os dias passados melhores do que estes? Porque não provém da sabedoria esta pergunta” (Eclesiastes 7:10). Tendemos a ser ingénuos quando recordamos o passado pois desvalorizamos frequentemente toda a carga negativa que esse tempo nos impôs, atendendo apenas a que nesse tempo éramos crianças ou jovens plenos de vida e saúde, talvez ao contrário do presente.
A verdade é que o sábio do Antigo Israel afirmava claramente: “Melhor é o fim das coisas do que o princípio delas” (Eclesiastes 7:8), o que representa uma asserção que choca de frente com a tendência para o pessimismo que tantas vezes nos invade e condiciona. Acreditar que o melhor ainda está para vir radica na esperança que a fé cristã propõe, já que o futuro a Deus pertence. É que se Ele faz parte da equação as pessoas de fé sentem que estão bem e seguras, venha aquilo que vier.
Apesar de tudo, somos nós que fazemos os nossos dias, embora sujeitos às circunstâncias. O futuro tem a nossa marca, apesar dos condicionalismos de toda a ordem a que estamos sujeitos. A velha pecha cultural do sebastianismo é um empecilho ao desenvolvimento, à capacidade de iniciativa e à responsabilização dos indivíduos, ao colocá-los na situação passiva de esperarem sentados que alguém lhes venha resolver os seus problemas. Quem tem fé sabe que importa fazer a sua parte se quiser contar com a ajuda de Deus, tal como sucedeu com Josué: “Esforça-te, e tem bom ânimo; não temas, nem te espantes; porque o Senhor teu Deus é contigo, por onde quer que andares” (Josué 1:9).
Depois do ouro do Brasil, depois dos benefícios do império português, e agora (ainda) com as verbas da Europa há que pensar o país como uma riqueza em si mesmo. Sem petróleo, gás ou diamantes, a mais-valia de Portugal será a sua população e as condições naturais como a paisagem, o sol e uma costa a perder de vista. Por isso há que investir como nunca na educação, na cultura e no ambiente.
Estamos colocados perante um novo ano. Fazem-se planos, renovam-se as expectativas, insufla-se a esperança. Nem que seja apenas durante duas ou três semanas e se volte à postura resignada do costume.
Mas a escolha entre o saudosismo e a confiança no futuro é nossa. Mais vale fazer um exercício de fé no futuro, acreditando que o melhor está para vir e trabalhando por isso, do que viver exclusivamente da celebração do passado, expurgado que foi das memórias negativas. Kierkegaard considerava o passado como um bom professor de História, mas apontava para diante: “A vida só pode ser compreendida olhando-se para trás, mas só pode ser vivida olhando-se para a frente.”
Afinal nós é que fazemos os nossos dias, embora invariavelmente condicionados por circunstâncias que nem sempre controlamos. Corrie ten Boom, uma holandesa que enfrentou o terror nazi dizia: “Nunca tenha medo de confiar um futuro desconhecido a um Deus conhecido.”
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