Na minha infância, ainda existiam uns homens que vinham vender enciclopédias de porta a porta. Quando a campainha tocava, podiam ser mórmons ou testemunhas de Jeová a vender a sua fé, ou estas pessoas que andavam com grandes malas a vender livros. Tenho a ideia de ver um destes à ombreira da porta, com uma grande mala de um castanho avermelhado. Mas talvez seja uma memória construída e a cor seja a que associo às lombadas encadernadas que havia na estante da sala. Nem toda a gente tinha enciclopédias em casa. Nos trabalhos de grupo no ciclo, juntávamo-nos em casa de quem as tinha para ajudar a compor os textos e tirar dúvidas.
Fiz a primária no mesmo colégio em que tinham andado o meu pai e a minha tia e tenho quase a certeza de que os mapas que estavam pendurados ao lado do quadro de ardósia ainda eram os mesmos desse tempo da outra senhora, que para quem não sabe era como se chamava a ditadura quando ainda dela tínhamos uma memória fresca, mesmo que não sentida diretamente na pele. Mesmo sem olhar para os mapas, tinha de dizer os nomes dos rios e dos afluentes, como tinha de dizer os nomes dos reis das dinastias.
Uma grande parte da base do nosso conhecimento centrava-se em duas ideias básicas: o recurso à consulta de livros e o exercício da memória. Haverá aqueles a quem tudo isto pareça obsoleto e obscurantista. Mas estes dois mecanismos de aprendizagem forneciam-nos uma resistência material a uma ameaça que só agora começa a apresentar-se como real. Quando a mera vontade de um oligarca tecnológico é suficiente para fazer desaparecer nomes dos mapas, para apagar ficheiros, para esconder informação, percebemos como os superpoderes dos motores de busca e das bases de dados digitais nos tornaram, afinal, tão frágeis.
Aquilo que antes nos preocupava saber de memória parece-nos agora garantido. Não nos lembramos da segunda dinastia? Vamos ao Google. Queremos saber como se chama um rio? Googlamos. Mas e se a informação que lá estiver for manipulada? E se o Golfo do México se tiver evaporado por capricho de um governante tresloucado que partilha imagens de inteligência artificial que mostram Gaza como um destino turístico de luxo, onde chovem notas de dólar, já depois de devidamente extintos todos os palestinianos?
Haverá, claro, quem desenhe na internet bolsas de resistência, motores de busca alternativos, sites com informação fidedigna e independente. O problema é que chegar a esses recursos será só para alguns. E temo que sejam muito menos do que aqueles que, quando eu era criança, se podiam dar ao luxo de exibir os volumes das enciclopédias nas estantes lá de casa.
A própria ideia de acumulação de conhecimento parece-nos hoje impossível. Navegamos de tarefa em tarefa, consumidos por uma economia da atenção, que nos minera os dados e o tempo como metais preciosos. Quantas vezes pegamos no telefone para ver como estará o tempo amanhã e, sem nos darmos conta disso, iniciamos um scroll infindável por mensagens, pushs, vídeos e posts que transforma esse pequeno gesto num sorvedouro de tempo? Quando finalmente largamos o telefone talvez se tenha passado já meia-hora, quando satisfazer aquela pretensão inicial não nos ocuparia mais do que meio minuto.
Encontrei no livro de Marta Peirano, editado em 2019, “O Inimigo conhece o sistema”, um dado inquietante sobre a nossa capacidade de atenção. É neste momento menor do que a de um peixinho de aquário. “A capacidade do peixe é de nove segundos, enquanto neste preciso momento a do humano médio é de oito. No ano 2000, a nossa capacidade de focar atenção numa única coisa era de doze segundos”, diz a autora, explicando que isso não aconteceu por acaso. Foi obra de empresas tecnológicas que usaram o conhecimento de pessoas como um psicólogo de Harvard chamado B.F. Skinner para desenvolver mecanismos de condicionamento das nossas respostas e, com isso, aumentar o tempo que dedicamos àquilo que nos querem vender.
A questão é que não só nos conseguem vender o que querem, como conseguem extrair de nós o máximo de dados possível para tornar mais eficazes essas vendas. Pior: atingiram um patamar em que conseguem influenciar as nossas crenças, moldar o nosso posicionamento político e ter um impacto real nas nossas capacidades cognitivas ou na informação a que temos acesso.
Ultrapassar as dificuldades que este tipo de tecnocracia nos levanta não implica ir viver para uma gruta sem internet, recuperar as velhas enciclopédias e obrigar os miúdos a saber de cor as linhas dos caminhos de ferro. Mas implica o desenvolvimento do pensamento crítico, a capacidade de desligar do digital e, acima de tudo, implica deixarmos de olhar para a tecnologia como se ela fosse ideologicamente neutra.
Podemos começar por refletir seriamente nas consequências cognitivas e sociais de estarmos a criar gerações de crianças viciadas em ecrãs ainda antes de conseguirem articular decentemente uma frase. Podemos questionar os benefícios de levar esses mesmos ecrãs e todo o seu excesso de estímulo para as escolas, que deviam ser lugares de reflexão, produção de conhecimento e sociabilização entre pares.
Há, apesar de tudo, alguns sinais de resistência. No Brasil, foi proibido o uso de telemóveis e tablets em todas as escolas, públicas e privadas, tanto nas salas de aulas como nos recreios. Está longe de ter sido o único país do mundo a perceber a importância deste passo. Um estudo divulgado pela UNESCO no Dia Internacional da Educação revela que no início de janeiro de 2025 eram já 79 os países que tinham introduzido restrições ao uso de dispositivos eletrónicos em ambiente escolar. Da França à China, passando pelo Reino Unido, há cada vez mais lugares do mundo em que a consciência dos efeitos nefastos do abuso das tecnologias na infância consegue superar o embasbacamento bacoco do entusiasmo com a modernidade da digitalização. E esse só pode ser um sinal de esperança.
Uma vez, um amigo (que por sinal é engenheiro informático e trabalha numa empresa de IT) disse-me que um dia olharemos para as imagens de crianças com ecrãs nas mãos com o mesmo horror que hoje nos causam as fotografias de menores a fumar ou a trabalhar em fábricas. Se chegarmos a esse dia, ainda haverá alguma esperança.
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