“Boa noite a todos. Sou o Lor Neves. Pai, marido, imigrante em Portugal e serralheiro de profissão”. A voz quase não lhe treme. Não vem pedir. Vem à Assembleia Municipal de Loures, com um texto na mão, que lê com dignidade e o arranhar nos ‘r’ característico dos santomenses. Veio de longe e a vida fê-lo desembarcar nas Marinhas do Tejo, em Santa Iria da Azóia, onde uma casa vazia e um terreno baldio se transformaram num pequeno bairro improvisado para 99 pessoas, 21 das quais crianças, a mais nova ainda recém-nascida. Lor diz a quem o ouve que os seus vizinhos estão consigo “neste barco”. E é uma tempestade a que enfrentam desde que, a poucas semanas do Natal, encontraram à porta das barracas um papel que lhes dava 48 horas para retirarem todas as suas coisas para que tudo fosse demolido.
Desde esse dia, há colchões, panelas e sofás debaixo de um viaduto. As máquinas não vieram na data marcada para a demolição. Mas ninguém duvida de que virão quando ninguém estiver a olhar. E é por isso que Lor e as suas vizinhas e vizinhos não se calam nem se escondem. É importante vermos os seus rostos. É importante olharmos de frente para aqueles sobre quem já paira até a ameaça de lhes serem retirados os filhos por não terem uma casa para lhes dar.
“Vim para este país à procura de um futuro melhor para minha família. Sempre soube que este caminho ia ser complicado”, confessa Lor Neves, num discurso feito para reclamar a sua humanidade. Porque ela não lhe é garantida à partida. Negro, pobre, imigrante, tem de repetir que vem por bem, que trabalha, que é humano. E é isso que faz.
“Vimos por bem”, “somos um povo trabalhador, queremos dar melhores condições aos nossos filhos, queremos viver com dignidade, trabalhamos, descontamos”, “somos seres humanos”. “Nós não vivemos nesta situação porque queremos”, “vivemos aonde vivemos porque não temos outra alternativa”, “não vimos outra alternativa se não tentar criar um lar naquelas casas abandonadas”, “queremos colaborar com o processo de arranjar casa para nós, queremos pagar rendas”. Justifica-se.
No vídeo que registou a sua intervenção, Lor Neves fala de pé junto a um microfone e, no canto inferior direito do plano, há um homem que o ouve. É apenas uma cabeça de homem branco, careca, de meia-idade, com excesso de peso. Vai franzindo o sobrolho. Levanta e baixa os olhos. Ouve e interroga-se. Em cada prega do seu rosto são visíveis as perguntas que faz em silêncio àquele negro pobre e imigrante. Não se lhe vê qualquer comoção.
Olhamos para aquele homem e ele é parecido com os que tiveram de construir cidades de chapa de zinco e lama às portas de Paris. Chamavam-lhes Bidonvilles. E lá falava-se Português. Mas não sabemos nada deste homem que ouve, com alguma impaciência indisfarçada, o apelo de Lor Neves. E por isso não temos forma de perceber se algum dia teve também de justificar a sua humanidade perante outros homens.
Exigimos muito aos pobres. É pobre, mas honrado. Pomos ali a adversativa para que fique bem claro que a honra é uma coisa que se constrói a custo, ao contrário da pobreza que vem sem esforço e tantas vezes à nascença.
Os pobres têm de ser trabalhadores, têm de ser esforçados, têm de estar acima de qualquer suspeita. Os requisitos morais para um pobre que reclame um direito ou peça uma ajuda estão muito acima do que qualquer banco pede a um milionário para lhe emprestar uma fortuna ou do que qualquer Estado requer para lhe perdoar milhões em impostos. A moral é obrigatória para os pobres. Para os ricos é opcional.
Não é difícil imaginar que Lor Neves tenha de ouvir muitas vezes um “vai para a tua terra”. O que exige muito mais imaginação é pensar que um dos 50 estrangeiros a quem o Estado português deu em 2023 uma borla fiscal de 262 milhões de euros tenha alguma vez ouvido coisa semelhante. Ao todo, estes imigrantes ricos receberam do Estado benefícios fiscais que nos custaram 1,3 mil milhões de euros no ano passado. Mas isso não causa sobressalto.
O que nos incomoda são os pobres. Incomodam-nos os que nos constroem as casas e depois as limpam, os que nos servem nos restaurantes e nos trazem comida a casa, os que nos apanham a fruta e nos fazem a vindima, os que nos tratam das crianças e nos cuidam dos mais velhos, os que nos transportam e os que com os descontos do seu trabalho nos pagam as pensões.
E é por isso que Lor Neves, serralheiro de profissão, que trabalha e paga impostos, está à beira de ficar sem o teto precário que construiu com as suas mãos, mesmo nas vésperas de Natal, perante uma indiferença quase generalizada. Ele e mais 98, dos quais 21 são crianças, que se arriscam a ser separadas de pais cujo crime é serem pobres.
Há quem exija que ao lado de cada árvore pagã e iluminada se exiba um presépio, esquecendo-se de que esse abrigo precário acolhia um pai carpinteiro e pobre, obrigado a fugir da sua terra para proteger a família. Como acolheriam eles hoje esses três?
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