A pele branca, os cabelos negros soltos, os pés descalços. Os braços cruzados abaixo do peito. Ahoo Daryaei despiu-se até ficar de roupa interior à porta de uma universidade no Irão. Quem a rodeia evita olhar. Ela anda para trás e para a frente, com uma rigidez de estátua. E, no entanto, é como se a sentíssemos tremer debaixo daqueles braços que se apertam, como se se estivesse a segurar para não se partir. O seu corpo é uma arma. E por muito medo que sinta neste momento, são os que a rodeiam que estão apavorados.
“As mulheres metem medo”. Dou por mim a escrever esta mensagem a uma amiga que se queixa de como é atacada de cada vez que dá uma opinião. “Medo”. É interessante que o escreva. O que há a temer? Penso nos apedrejamentos contra as adúlteras, nas fogueiras que queimaram as bruxas, nos trolls que nos perseguem na internet, em como uma motorista de Uber me explicou que vai sempre trabalhar de fato de treino e sem maquiagem para evitar (como tantas vezes acontece apesar disso) que lhe façam propostas para se prostituir. Em todos os casos, há um exercício de poder para impor a submissão.
“Não devemos entregar as nossas responsabilidades às mulheres. Eu admiro as mulheres, não as diminuo, de todo. Mas elas devem estar lá para nós, devem ser um grande apoio”. Esta frase foi dita há uma semana por Alexander Lukashenko e até há pouco tempo poderíamos pensar que esta afirmação descarada de uma misoginia que quer manter as mulheres prisioneiras das tarefas de cuidado seria apenas uma extravagância própria do Presidente de um país como a Bielorrússia. Mas esse tempo acabou.
Pete Hegseth, o homem que Donald Trump quer a liderar o Pentágono, já deixou claro que considera as mulheres militares um empecilho. “Não devíamos ter mulheres em posições de combate. Isso não nos tornou mais eficazes nem mais letais, e veio complicar o combate”, disse na mesma entrevista em quem se referiu às políticas de Diversidade, Equidade e Inclusão (DEI) no exército, lançadas no início da década de 1960 por John F. Kennedy, como “merdas woke”.
Elon Musk, um dos mais influentes conselheiros do recém reeleito Presidente Donald Trump, não hesitou em partilhar no X um post sobre como “mulheres e homens com baixa testosterona” não são capazes de pensamento livre porque “não se conseguem defender fisicamente”. O post original apareceu no 4chan, uma rede social de supremacistas brancos misóginos de extrema-direita. Musk partilhou-o com a frase “observação interessante”.
Muito “interessante” também é esta promessa de Donald Trump: “Vamos proteger as mulheres, quer elas queiram ou não”. Fica claro o que estes homens pensam sobre o direito à autodeterminação das mulheres, infantilizadas, incapazes de decidir sobre os seus destinos, a precisar de proteção para, claro, servir e apoiar machos alfa cheios de testosterona.
A organização Human Rights Watch está a levar a sério este tipo de sinais. E nem precisa de especular sobre o futuro da Administração Trump para antever a ameaça sobre dos direitos das mulheres. Basta recorrer ao passado. Macarena Sáez, a diretora do departamento de direitos das mulheres da Human Rights Watch, lembra os estragos que a primeira passagem de Trump fez ao atacar as políticas para combater a discriminação salarial ou a discriminação na educação e dificultar o acesso ao aborto (por exemplo, recuperando uma lei de 1873 sobre o envio por correio de “material obsceno” para impedir mulheres de encomendarem pílulas abortivas de estados em que são legais). “Espero que os ativistas pelos direitos humanos e outros que lutam contra os autoritarismos percebam que lutar pelos direitos das mulheres é lutar pela democracia”, diz Macarena Sáez.
Andamos há demasiado tempo a ignorar o que existe mesmo à nossa frente. Iludidos pelo ruído dos conservadores e das suas guerras culturais, tem-nos passado ao lado a forma como cada vez mais homens se organizam em tribos como os incels (celibatários involuntários), dispostos a ver o mundo como uma guerra biológica, com machos alfa e mulheres que têm de ser submetidas.
Susanne Kaiser, uma jornalista alemã, traça um retrato profundo e surpreendente desse submundo em A revolta do homem branco, um livro que explica como se multiplicam em fóruns online movimentos a favor da legalização da violação e de apologia da violência machista como uma forma de repor uma certa ordem patriarcal tradicional, num mundo que estes grupos misóginos acreditam estar a retirar direitos aos homens.
Ao ler Kaiser, percebemos a importância que tem assumido o ataque ao chamado “wokismo” por parte de grupos conservadores. Em Portugal, onde não há registo de alguém alguma vez ter sido verdadeiramente cancelado por ser misógino, racista ou homofóbico, estas lutas parecem-nos por vezes quixotescamente ridículas. Mas há um propósito na narrativa que apresenta os homens brancos heterossexuais como vítimas de um feminismo agressivo que supostamente os quer oprimir.
“A violência raramente se justifica quando somos nós quem começa. Mas é sempre justificada quando nos estamos a defender de uma injustiça”, escreve Susanne Kaiser, citando o sociólogo feminista Michael Kimmel, que explica como a violência é usada contra as mulheres para repor o controlo, de uma forma que os mesmos homens nunca pensariam usar contra, por exemplo, os chefes que os humilham e maltratam, porque acreditam que essa humilhação decorre de uma hierarquia natural e aceitável.
A ideia de que há uma guerra entre géneros só favorece os homens que odeiam as mulheres. E eu acredito que nem todos os homens odeiam as mulheres. Mas por algum motivo estamos a deixar que regresse uma retórica bafienta que pensávamos enterrada num passado de horrores. Mesmo que não pareça, este é o tempo de falar de amor. E de olhar para o exemplo de Ahoo Daryaei, abraçando-nos para segurar o medo que temos por dentro, enquanto enfrentamos quem nos teme. Não, não temos de nos esconder.