A passar férias numa zona rural de França, ficaram com a filha doente. Mas no raio de vários quilómetros não havia uma urgência aberta. Durante a noite, a subida da febre fê-los procurar uma farmácia. Não havia nenhuma aberta. Só uma linha telefónica, onde uma técnica lhes explicou como partir um comprimido de adulto para o dosear para uma criança. A mãe insistia em perceber se não haveria uma farmácia de serviço, mesmo que fosse longe, explicando que em Portugal há sempre uma aberta. “Minha senhora, isto não é Portugal”, ouviu do outro lado da linha.
“É um país estranho, a França”, dizia este sábado o escritor Michel Houellebecq numa entrevista ao jornal espanhol El País. Na véspera das eleições, Houellebecq assumia-se como um populista, mas revelava de forma vaga que até agora tinha votado sempre a favor “da elite”. E explicava que vive agora no campo, mas continua a ter médico só em Paris. “De cada vez que tenho uma consulta, vou a Paris”, contava, para falar na forma como o país se está a dividir ao meio, entre os que vivem nas grandes metrópoles e os que estão nas zonas rurais.
Há uns meses, um amigo francês explicava-me que parte da força das manifestações dos gilets jaunes tinha que ver com a revolta perante a subida dos combustíveis. “Quem vive em Paris fala na cidade dos 15 minutos. Quem está no campo não consegue fazer nada sem pegar no carro e percorrer grandes distâncias, muitas vezes debaixo de neve no inverno”. São dois mundos incapazes de se compreender.
“O país que está bem votou no partido de Macron”, resumia o noticiário das 8h da France Inter no rescaldo das eleições. O que está mal, acrescento eu olhando para o mapa do Le Monde, dividiu-se entre a extrema-direita de Le Pen e Bardella e a Nova Frente Popular de esquerda. Nas 23 maiores cidades, a esquerda só não foi maioritária em cinco. Em Lille a vitória foi esmagadora, com 70,3%, em Montpellier a esquerda teve 65,7% dos votos e em Nancy 64,7 por cento.
Paris também votou à esquerda (a Nova Frente Popular teve 40,7%), mas o Ensemble de Macron chegou aos 33,5%, fruto talvez desse “país que está bem”. A extrema-direita ficou-se por uns magros 5 por cento.
Quando esta matemática eleitoral se cruza com a geografia, percebemos que a vitória da esquerda nas eleições de domingo é curta, não só porque ficou aquém da maioria absoluta para governar, mas também porque ela se construiu acima de tudo nas metrópoles, por natureza mais progressistas, mobilizadas para travar a extrema-direita.
Acontece que o medo é uma barragem frágil, que se desgasta com o tempo e cede facilmente. É preciso uma construção de esperança. Uma governação que não vá à raiz dos problemas deixará sempre espaço a que medre a extrema-direita.
No país do désert médical, há pelo menos 63% de franceses que prescindiram nos últimos cinco anos de um ato de cuidado médico por ser demasiado caro. E há a crise da pénurie d’enseignants, que significa que há pelo menos três mil concursos docentes aos quais não concorreu um único professor: segundo o estudo Pisa, em 2022 dois terços dos alunos franceses que fizeram estas provas não tinham professores a todas as disciplinas. E, pasme-se, há fome: um estudo do instituto Crédoc revelava em 2023 que 16% dos franceses estão em situação de precariedade alimentar e que este número dispara para os 24% entre os menores de 40 anos.
Este retrato esbarra na caricatura dos franceses mimados agarrados a direitos incomportáveis para um país que já supera os 5% do seu PIB em défice. É um retrato feito de desigualdades profundas que as políticas das últimas décadas só agravaram. E é aí que reside a chave do imbróglio político francês, que é o espelho do que se passa um pouco por todo este velho continente.
A extrema-direita combate-se com a reconstrução do Estado Social. Sim, isso é caro. Mas quanto custará não fazer nada? Qual é o preço que estamos dispostos a pagar por isso?