Eu gosto dos enfermeiros. Sempre que tive de me cruzar com enfermeiros, fui atendido de forma profissional e humana. Acho mesmo – perdoem-me a generalização – que escolheram aquela profissão por uma questão de vocação. Mais do que os médicos. Reconheço-lhes a sensibilidade, a humanidade e a cara alegre com que executam as tarefas mais repugnantes, as que os médicos dispensam e lhes delegam e que, do ponto de visto dos cuidados com o corpo humano, acabam por ser as que mais volta dão ao estômago. Só por isso, já têm os meus créditos. Eu acho que podia ser médico, mas não era capaz de ser enfermeiro. Portanto, eu, que os tenho em tão boa conta, era capaz de cortar relações com um enfermeiro que fosse o oposto do explícito nestes elogios. Mas isso sou eu, que não lido com eles institucionalmente, em funções inerentes a cargos executivos e, portanto, posso entregar-me a “estados de alma”. O Ministério da Saúde não. O Ministério da Saúde não tem estados de alma. É uma estrutura do Governo e tem relações institucionais. O Ministério da Saúde não precisa de levar injeções nem que lhe recolham as fezes para análise. O Ministério da Saúde é composto por pessoas, mas não é uma pessoa. O Ministério da Saúde não pode cortar relações com a Ordem dos Enfermeiros porque sim. Ou porque lhe desagrada o comportamento, ou a atitude, ou as declarações da bastonária. O Ministério da Saúde, se acha que a bastonária comete irregularidades ou ilegalidades, recorre ao Tribunal Administrativo. O Ministério da Saúde não devia perder a cabeça, desorientar-se, nem mostrar desespero e impotência. Bom, mas o Ministério da Saúde fez isto tudo. Porquê?
Pelo exposto, também não acredito que os enfermeiros façam uma greve para prejudicar deliberadamente os doentes, para lhes adiar cirurgias e, quem sabe, contribuir para que se percam vidas por falta de assistência. (Embora eu, se tivesse um familiar a morrer por falta de uma cirurgia, ponderasse pôr o sindicato dos enfermeiros em tribunal…) Mas eu, se não acredito que os enfermeiros, a tal classe que prima pela generosidade em ajudar o seu semelhante fragilizado, faça algo deliberado para aumentar a morbilidade e, até, a mortalidade da população, acredito que, como todas as classes, esta possa ser manipulada para que se consiga, à sua custa, atingir determinados fins políticos, seja pôr em causa o Serviço Nacional de Saúde (SNS), seja causar dificuldades ao PS, em ano eleitoral. Neste momento, os enfermeiros estão a passar por um estado de euforia, inebriados pelo sucesso da sua ação, conscientes do seu poder. Essa bebedeira é perigosa. Mas boa, enquanto dura. Não acredito que estejam a ser financiados pelo poder oculto do setor privado, para estoirar com o SNS, embora o resultado objetivo desta luta possa ser esse mesmo. Não os imagino, porém, a colaborar conscientemente numa pugna que pode ter como resultado final o desemprego, por falência do SNS, e a reciclagem como «colaboradores» dos privados, onde ganharão menos e terão mais dificuldades em fazer greves, a torto e a direito. No limite, a ressaca desta «pedrada» que agora sentem a bater poderia ser essa. Mas eles não são masoquistas ao ponto de o prever.
Na verdade, com o sistema de crowdfunding, o sindicato está a tatear, a inovar, a revolucionar os moldes tradicionais das lutas laborais. Nada a opor, mas eu, se fosse um militante oposicionista a este Governo, por exemplo, um militante ferrenho do PSD, punha lá algum – e queria lá saber das reivindicações dos enfermeiros! Nem era preciso ser o dono de um hospital privado. E é por isso que é tão importante saber-se quem financia, não para impedir esse financiamento, mas para conhecermos as suas motivações exatas.
Sempre achei que a convocação de greves condenadas ao insucesso devia responsabilizar quem as convoca. Como trabalhador, eu – que nunca fiz uma greve, embora seja sindicalizado – bateria à porta do meu sindicato a pedir contas: “Fui na vossa conversa, convenceram-me de que iria garantir os meus direitos, perdi dois dias de salário, e nada. Quem me paga o prejuízo?”. Dir-me-iam: “Fizeste greve porque quiseste, a greve é uma opção de cada trabalhador”. De acordo, mas sabemos bem como funciona a pressão em ambiente de trabalho, para não falar dos piquetes de greve… Por isso, defendo que qualquer sindicalizado devia descontar para um fundo de greve. Infelizmente, temos a ideia de que os nossos descontos para os sindicatos se destinam, unicamente, a pagar os salários aos sindicalistas: professores que não dão aulas há 30 anos, torneiros mecânicos que não passaram de aprendizes, jornalistas que escreveram a última linha no tempo da Maria Cachucha e enfermeiros que nunca acertaram numa veia para tirar sangue. Um fundo de greve seria transparente: descontávamos agora para receber quando tivéssemos de fazer uma paralisação. Mas este crowdfunding é opaco, pode ser manipulado e terá motivações insondáveis. Digam o que disserem.
O Governo de António Costa pode estar a colher as tempestades dos ventos do “virar de página da austeridade” que andou a semear. Mas esse argumento – que foi esta sexta-feira usado, no Parlamento, por uma deputada do PSD – também não é completamente válido. Mesmo dando de barato que a página da austeridade não foi completamente virada no consulado da geringonça, as reivindicações dos enfermerios não têm nada a ver com isso. Porque uma coisa é acabar com a austeridade., Outra coisa é aumentar a despesa de uma forma tal que nos obrigue a novo período de austeridade ainda pior, algo que o Governo faz muito bem em evitar. O argumento não é o de que não há dinheiro. O argumento é o de que há dinheiro, mas é preciso para outras coisas, mais importantes do que satisfazer os apetites de corporações. E isto é válido tanto para os enfermeiros do SINDEPOR (que alguns acham que é de direita) como para os professores da FENPROF – que toda a gente sabe que é do PCP.
Eu gosto dos enfermeiros, porque fazem boa enfermagem. Também gosto dos políticos quando aplicam boas políticas. Mas nunca vi um político a suturar uma ferida. Também não me apetece ver uma enfermeira a determinar a política de Saúde, em Portugal. Se é que me entendem.