Com a secção ‘Sociologia do Quotidiano’ pretende-se tratar acontecimentos do dia-a-dia, através de uma análise dos processos do funcionamento e transformação da sociedade, dos diversos comportamentos e práticas (individuais e de grupos) da vida quotidiana, incluindo as interações sociais e políticas, onde se jogam os interesses (que por vezes conflituam) dos diferentes agentes sociais.
A Fórmula 1, depois do popular e inatingível Futebol, é o desporto com maior número de adeptos. Mas, ao contrário do futebol – um desporto com grande predominância de atletas/jogadores negros e de origem humilde – a Fórmula 1 é um desporto de brancos e ricos.
O fenómeno Lewis Hamilton é uma exceção: nascido na Inglaterra, em 1985, de origem humilde, católico, e filho de pai negro e mãe branca; um mestiço, portanto, mas considerado/classificado, pelos brancos, como sendo negro, e ele próprio, até com um certo orgulho, se autoidentifica como negro. Criado pelo pai e pela madrasta (os pais divorciaram-se quando ele tinha apenas dois anos de idade), dormia no sofá da sala. O pai Anthony teve que arranjar três empregos em simultâneo para sustentar a família e ajudar o filho a realizar o seu sonho de ser um grande piloto. Negro e pobre, sofreu bullying na escola. Para reagir às agressões físicas aprendeu karaté. Não permitiu que a discriminação e o racismo o afetassem; ao contrário, Lewis tornou-se ainda mais forte, resiliente e determinado.
Em 1995, quando já estava no Kart, a dar os primeiros passos na carreira, o pai, sem patrocinadores, pediu ajuda aos fornecedores, pois precisava de um motor para o carro do filho e não tinha dinheiro para o pagar. O pai conseguiu o motor e o filho deu-lhe o título. Na cerimónia de entrega do trofeu, Lewis aproximou-se de Ron Dennis, patrão da McLaren, um dos mais poderosos e influentes da Fórmula 1, pediu um autógrafo e disse: “Olá, sou o Lewis, ganhei o Campeonato Britânico de Kart e um dia quero pilotar um dos seus carros”. Ron Dennis deu-lhe o autógrafo e escreveu o número do telemóvel, com a frase – “puto (kid), procura-me daqui a nove anos e veremos”. Na verdade, em função do enorme talento do jovem piloto, três anos depois, é Ron Dennis que liga para Lewis, oferecendo um contrato para jovens talentos da McLaren.
Mas há ainda um outro importante fator que liga Lewis a Ron Dennis: foi pilotando um McLaren que Ayrton Senna, o seu ídolo, a sua maior fonte inspiradora, ganhou 3 campeonatos do mundo (1988, 1990, 1991). É pertinente lembrar que Senna morreu tragicamente num acidente no Grande Prémio de San Marino (Itália), em 1994. Lewis afirmou posteriormente: “Senna será sempre o meu ídolo”; “sei que serei tão bom como ele foi”. O que caracterizava Senna era a busca pela perfeição. Inspirado pelo seu maior ídolo, Lewis Hamilton é hoje sinónimo de perfeição.
Em 2007, Lewis realiza o seu sonho de criança: entra na Fórmula 1 como piloto de Ron Dennis, na McLaren e, em 2008, ganha o seu primeiro título mundial. Em 2013, muda-se para a Mercedes, uma parceria homem-máquina perfeita. Considerado o mais completo piloto de todos os tempos, Hamilton, até a data de hoje, é detentor de 94 vitórias, 97 pole position e sete campeonatos (2008, 2014, 2015, 2017, 2018, 2019, 2020) – igualando o considerado inalcançável Schumacher.
A criança pobre e negra é hoje um dos desportistas mais bem pagos do mundo e um multimilionário. Antes sofria bullying e, talvez mesmo por isso, é um grande ativista, atuando pela defesa da natureza (é vegan), denunciando o racismo contra os negros e discriminação das minorias étnicas. É um notável apoiante do movimento ‘black lives matter’, que surgiu nos Estados Unidos após o assassinato de George Floyd por um polícia branco e declaradamente racista. Porém, o problema do racismo continua nos Estados Unidos e também no Brasil: no dia 19 de novembro, na véspera do Dia da Consciência Negra, seguranças de um supermercado agrediram até a morte o cidadão negro João Freitas, na cidade de Porto Alegre. Lewis escreveu no Instagram: “I’m devastated by the news of a new black life lost; we need to stop this”.
Para terminar este texto – na verdade uma homenagem – cito uma frase favorita de Lewis Hamilton: “você pode me derrubar, mas eu me levanto duas vezes mais forte”.