Em primeiro lugar, permitam-me uma nota pessoal: escrever sobre os Estados Unidos exige, da minha parte, um maior controle da necessária objetividade sociológica. Porquê? Porque envolve fortes relações e sentimentos pessoais e familiares.
No caso das relações académicas, esta reflexão, sobre as eleições presidenciais norte-americanas, teve a valiosa ajuda do meu colega na Columbia University (New York), o sociólogo Tony Carnes. Desde a minha entrada nesta universidade, na condição de professor visitante, em agosto de 2009 até hoje, o Tony foi sempre um grande apoiante do meu trabalho. Por isso, é justo dizê-lo, esta crónica está apoiada, também, nas trocas de ideias que tive com o Tony nos últimos anos.
A fundação da nação americana está assente em dois pilares principais: o étnico-racial (indígenas, brancos, negros, asiáticos e uma enorme diversidade de imigrantes) e o religioso (protestante e católico).
Hoje, segundo os dados do Pew Research Center (2014), a sociedade norte-americana é maioritariamente protestante-evangélica e, em segundo lugar, católica. Esta orientação religiosa tem um reflexo direta na política; até hoje, antes de Biden, o único presidente católico foi John Kennedy (1961-1963); no entanto, provavelmente, Kennedy venceu as eleições mais por ser membro da dinastia Kennedy (quase uma monarquia nos EUA) do que por ser católico.
Nesta eleição (2020), a disputa (acirrada, voto-a-voto) foi entre um branco-protestante (Trump) e um branco-católico (Biden).
Centremos a discussão no fenómeno Trump. Considerando apenas a orientação religiosa, ele conquistou 76% dos votos dos protestantes; o que significa que recebeu também votos dos protestantes negros; um dado interessante, sendo ele um racista declarado e forte apoiante da supremacia branca. Venceu entre os brancos protestantes (previsível, é uma ‘tribo’ que partilha a sua pertença étnica e religiosa), mas teve também um apoio expressivo dos católicos brancos (‘tribo’ do Biden). No entanto, neste caso específico, conquistou o segmento católico mais conservador e Biden os progressistas; ao contrário de Trump, em declarado conflito com o Papa Francisco, Biden tem mantido contatos privilegiados com o Papa e, como católico, defende a doutrina social da igreja, materializada na preferência pelos pobres e pelas minorias discriminadas. Trump venceu também entre os hispânicos (um grupo étnico não branco), que são predominantemente católicos (religião de Biden); conquistou 31% dos votos hispânicos na média nacional; considerando apenas o estado da Flórida, obteve 47%. Há cerca de 6 milhões de judeus nos EUA; destes, apesar (ou talvez por causa) da forte aliança de Trump com Israel, 70% votaram em Biden.
É uma realidade muito complexa. Por isso, é muito difícil compreender esta salgalhada étnico-racial e religiosa, unindo grupos que são conflituosos entre si, mas que, juntos, apoiam Trump. Uma explicação possível é que, normalmente, uma determinada minoria é altamente competitiva e conflituosa com os outros grupos minoritários. Não existe, neste caso, aquilo que denominamos de ‘solidariedade étnico-racial’; na prática, há uma enorme disputa entre os próprios grupos discriminados – negros, hispânicos, latinos, pobres, mulheres. Quando, por exemplo, Trump ataca a imigração ilegal hispânica e constrói um muro na fronteira com o México, ele recebe apoio dos negros, dos brancos de baixa renda e, vejam bem, dos próprios hispânicos já instalados no país – ‘se já estás, feche a porta’.
Outros exemplos: o racismo contra os negros (o grupo que mais sofre discriminação e violência) é partilhado, não só pelos supremacistas brancos, mas, também, pelas comunidades árabe-muçulmana, hispânica e asiática. Por sua vez, os negros, hispânicos e judeus estão juntos contra os muçulmanos. Os negros e os hispânicos são mais anti-judeus do que os brancos, etc.
É pertinente realçar que esta conflitualidade étnico-racial e religiosa não se reflete apenas em atitudes de discriminação; envolve ações de violência e mortes – segundo os dados estatísticos, cerca de um terço de todos os crimes de ódio nos EUA são cometidos, não por brancos contra os outros grupos, mas dentro (e entre) (d)as próprias minorias étnico-raciais.
Trump é um verdadeiro líder carismático (no sentido de Max Weber), um ‘showman’ da televisão e agora das redes sociais (twitter): é impressionante o vínculo emocional estabelecido entre ele e seus apoiantes; por isso, a razão para votar Trump é emocional(mente estúpida) e não racional. Biden, ao contrário, não é um verdadeiro líder carismático, mas tem uma postura de estadista, de conciliador, defende a união e não a divisão entre os diferentes segmentos da sociedade; aliás, como ficou demonstrou no seu discurso de vitória.
Uma palavra final sobre a Vice-presidente Kamala Harris. É protestante, complementando o catolicismo de Biden. Ao contrário do que aparece na comunicação social, ela não é uma típica ‘afro-americana’: a mãe é de ascendência indiana e o pai é um mestiço jamaicano, ambos hoje cidadãos norte-americanos e membros da elite académica. Mas, independentemente da sua pertença étnico-racial, Kamala é um marco na história norte-americana: não pela sua cor da pele – o país já teve um presidente não-branco (Obama) -, mas por ser uma mulher, numa sociedade ainda dominada pelos homens. Nesta gestão, se ela conseguir angariar apoios dos diferentes e conflituantes segmentos da sociedade, os Estados Unidos poderão ter, finalmente, um(a) Presidente mulher e não-branca.
Com a secção ‘Sociologia do Quotidiano’ pretende-se tratar acontecimentos do dia-a-dia, através de uma análise dos processos do funcionamento e transformação da sociedade, dos diversos comportamentos e práticas (individuais e de grupos) da vida quotidiana, incluindo as interações sociais e políticas, onde se jogam os interesses (que por vezes conflituam) dos diferentes agentes sociais.