Há muito que oiço dizer que, a bem do crescimento pessoal, é preciso sair da rotina e viajar para um sítio onde nunca se foi. Fazer algo que nunca se fez. Ao menos uma vez por ano, entregar-se à aventura, cultivar uma dose de transgressão e explorar novos territórios. No fundo, todos temos este apelo. Porém, é comum vê-lo como um direito exclusivo de adolescentes e jovens adultos, preferencialmente cultos e com algum fundo de maneio para “luxos desses”. Ou, como já ouvi, das bocas de novos e menos novos, “andam por aí a ver mundo porque podem”. Uma boa parte, diria eu, anda a desfrutar de experiências – surpresas boas e sobressaltos incluídos – como se não houvesse amanhã. E, muito provavelmente, a experimentar o “hoje”, a dar o corpo ao manifesto, idealmente sem ligar ao que parece bem ou mal a terceiros. E crescer com tudo isso. Crescer? Sim, a treinar competências tão importantes como a capacidade de ser destemido, desenrascado, adaptável, flexível, atento. E cultivar a abertura à diferença. Desapegar-se do que, descobre-se então, não é assim tão essencial.
Dito isto, de que falamos, quando falamos das “nossas” limpezas de verão? O que ganhamos com isso na vida de todos os dias? As respostas seguem dentro de momentos. Sendo muitos aqueles que não têm subsídio de férias ou podem reservar tempo (dias, semanas ou meses) para usufruto próprio – por estarem doentes, por terem familiares a seu cargo, por não terem direito a férias ou por serem viciados em trabalho – também eles podem desfrutar de pausas e intervalos, olharem para dentro de si e fazerem “férias” da forma como se vêem, a si e às suas rotinas, pessoais e sociais. A proposta é desafiar-se e explorar novos ângulos, na perceção e na ação. Este exercício criativo pode ser tão ou mais refrescante do que sair de casa e fazer estrada com um enquadramento mental que foi ficando desatualizado sem se dar conta.
Sugestões para “arrumar a casa”
Ou como tirar a prova dos nove e inovar / renovar com o que temos de melhor
1. Sair da nossa zona de conforto
É um pouco como sair da idade do armário das rotinas, essas que tanto nos entediam mas aconchegam, até mesmo quando geram desagrado, tédio e frustração. Não nos desembaraçamos delas porque as conhecemos e nos são familiares. Até ao dia em que
a experiência passa a importar mais do que o conhecimento. Em que fala mais alto a voz que nos desafia a ir ao encontro do estranho, do novo, do desconhecido, com códigos e linguagens que pedem flexibilidade da nossa parte e nos podem deixar desconfortáveis e em modo de alerta.
É preciso QUERER ABRIR-SE à ideia e passar à prática, sem ficar pelo devaneio inconsequente (“Ah, como eu gostava de…”, “se um dia eu…”). A aversão ou resistência à mudança é o primeiro obstáculo a vencer. Se acharmos que estamos a transgredir, a sair da nossa zona de segurança, isso pode ser bom, desde que na dose certa (cada um terá de descobrir qual a sua, sem GPS). O segredo está em quebrar o modo de funcionar em piloto automatic e TRANSGREDIR, nem que seja na ordem pela qual se executa uma tarefa. Ao fazê-lo, estamos a testar capacidades que pensavamos nem ter, ou que temos e não usamos. Alargar o repertório de respostas a partir da nossa matéria prima pode ser tão divertido quanto libertador.
Exemplo: Se anda sempre de carro, experimente usar uma bicicleta durante uma hora, alugando uma ou pedindo emprestada a alguém (desafio ainda mais interessante: se gosta mais de dar do que RECEBER, esta é a situação de que estava à espera para, finalmente, viver o outro lado da coisa, sem receio de perder o controlo!)
2. Seguir o que sentimos
O chamado “gut feeling”, que diz que o caminho se faz melhor por ali e não por aí (a direção que os outros esperam de nós, ou que pensamos que eles esperam). Fácil dizer, o desafio é fazer, ter iniciativa e TOMAR DECISÕES que, certas ou erradas, são as NOSSAS.
O problema começa quando seguimos vontades alheias para “não ter chatices”, porque “eles são a maioria” e nós precisamos que nos aceitem e aprovem. Ainda. Porque não aproveitar as pausas estivais para, de uma vez por todas, seguir o que sentimos e guiar cada ação de modo mais visceral e intuitivo, ou menos abstrato? Chama-se a isso PRESENÇA. O estar “centrado”, plenamente consciente, sem deixar-se condicionar pelas ações, atitudes e estados de espírito alheios.
Exemplo: Se costuma ficar à espera de convites para sair, troque a ordem do guião e avance, convide, vá ao encontro, sem medo de cair no ridículo, de levar uma nega ou (o pior cenário) de correr o risco de ninguém lhe ligar nenhuma. Com isto fica a perceber o quanto se tem em conta sem depender do feedback alheio. Faça-se à estrada, à sala de cinema, ao passatempo que sempre quis ter mas adiou à espera de companhia que lhe servisse de “motor de arraque”.
3. Criar valor
Chamem-lhe ‘vintage’. O prazer de fazer (ou deixar de fazer) porque assim apetece e não porque tem de ser ou devia ser. Darmos permissão a nós mesmos para fazer o que, no fundo, semore soubemos que era melhor para nós. Atenção: isto exige CORAGEM da nossa parte. Ao “limpar” uma série de teias de aranha (crenças irrealistas) da nossa garagem, sotão ou outra parte ou anexo da casa, vamos descobrir como só foi dificil no começo e que o espaço livre ganho compensou o esforço. O impacto da coisa só chega depois. Por exemplo, é natural que cheguemos à conclusão óbvia de que esgotamos os neurónios a fantasiar sobre a forma como os nossos passos iam ser recebidos, comentados, aplaudidos ou criticados. Que os outros estavam muito ocupados a fazer o mesmo que nós (a medirem-se pelos que estão à sua volta e a forma como irão reagir) para dedicarem generosas parcelas do seu tempo a monitorizar-nos. Em síntese (não desmoralize, p.f.): 1. Entre iguais, aqui ou noutro lado do mundo, não somos tão especiais como pensamos; 2. Crescer faz bem (se fizermos uma lista do que tememos e passarmos à fase de testes, isso ajuda).
De uma vez por todas, ao que nos importa realmente? A nós? A quem, ou a quê, damos mais valor? O que traz SIGNIFICADO aos nossos dias? As férias são aquilo que acontece quando fazemos “PAUSA” (detox) no fluxo de lamentações em torno das pequenas contrariedades e desilusões quotidianas. Quando deixamos de nos importar com o facto de as coisas de que estamos à espera não chegarem ou demorarem muito. Ou com a atitude da vizinha, do colega, do politico e de tudo o que NÃO funciona de acordo com as nossas EXPETATIVAS.
A boa notícia: reciclar é possível. A próxima pausa, folga ou periodo de férias podem ser eleitos como espaços livres, não de fumo, como certas zonas verdes, mas de ruminação mental e à prova de teorias da conspiração. Funciona nos filmes, mas talvez não resulte nas nossas vidas mundanas. O que nos diz respeito destaca-se sempre, no meio da ordem ou do caos. Enquanto respiramos e nos movemos na direção do que nos toca e motiva e dá razões para acordar e sair da cama de manhã. Assim aprendemos a respeitar o que nos diz respeito, a nossa VERDADE. Relativa, ainda assim, mas uma potente injeção de vida.
Exemplo: Se as suas últimas escolhas não foram as melhores para si – do prato ou local escolhido quando janta fora com amigos, ao rumo a dar à sua carreira ou vocação, passando pelo eterno adiar de uma ação porque nunca é a altura certa – atreva-se a perguntar até onde poderia ir se cultivasse pequenos atos de honestidade diária consigo. E que impacto teria essa atitude na relação com outros. As férias tendem a ser momentos de confronto, em que avaliamos como “luxo” ou “lixo” velhos assuntos que se julgavam esquecidos no nosso armário ou na arrecadação.
Boas férias. E boas limpezas de verão.