Pense na palavra sogro(a). Que sentimentos (e memórias, se for o caso) surgem? É provável que, hoje, nem os homens correspondam ao estereótipo de “um sogro do pior”, nem as mulheres cumpram a profecia da bruxa má, implícita no provérbio “sogra e madrasta, só o nome basta”. Uns e outros parecem encarar o novo estatuto com uma atitude mais descontraída e descomplexada. A sopa da mãe do companheiro é bem-vinda, “poupa-se tempo na cozinha e os miúdos gostam”. Sem ponta de paternalismo, o sogro responde às demandas que lhe colocam “os filhos”, os dele e o(a) que é como se o fosse. Eles e os genros e noras têm em comum uma missão complexa: manter equilíbrios instáveis, por tempo indeterminado.
Sim, leu bem. Indeterminado. Estamos num território sensível, um lugar cujo futuro está sempre em aberto. Há décadas atrás, para o melhor e para o pior – geralmente para o pior, como atestam os provérbios – os sogros eram vistos como um dado adquirido, uma conveniência e uma vicissitude associada ao matrimónio. Por vezes, a sua influência era geradora de enormes tensões, chuvas de sapos que acabavam por soltar-se de forma cíclica, repondo a ordem, i.e., levando as omnipresentes figuras a emendar a mão sempre que esticavam os limites um pouco além do razoável: “Desculpa se entenderam assim, não foi isso que eu quis dizer”. Agora é mais provável que tenham de justificar-se aos filhos, não por dizerem mal da nora ou do genro, mas por tomarem o partido deles, com desabafos não intencionais mas potencialmente explosivos, do tipo “a outra rapariga é que era” ou “para mim está tudo bem mas… não tragas ainda o meu novo genro cá a casa”.
Hoje, de um momento para o outro, lá se vai o estatuto. Basta que o(a) filho(a) não queira mais partilhar os seus dias e noites com aquela pessoa que passou a fazer parte das rotinas da casa. Das idas ao café e ao estádio, às conversas triviais durante os eventos das crianças, que evoluem para convívios regulares com afinidades várias. Não se ressentem só os filhos, no meio de pais que já não se amam, ou divididos entre a casa de uns e de outros, avós incluídos. Dizem até que as crianças se adaptam melhor do que os crescidos. No caso, os “queridos vilões”, ou familiares sem consanguinidade.
Quando uma ligação afetiva se quebra, compromete logo mais duas ou três. É como entrar num pântano, sem ter pedido e, pior ainda, sem saber como sair de lá. Atendendo à elevada frequência dos divórcios e separações (embora se tenha assistido a uma quebra ligeira nos últimos anos) é fácil imaginar a quantidade de gente espartilhada entre a necessidade de estar bem com os filhos (e as decisões destes, com as quais podem nem concordar) e o desejo de manter a cumplicidade com os companheiros deles. Agora, ex companheiros. Ou os futuros ex genros e ex noras.
“Devia haver um manual para lidar com situações destas”
Se existem, pelo menos, cinquenta maneiras de acabar uma relação, quantas estarão reservadas aos “atores secundários”, os protagonistas com os quais se foram construindo pontes, que se veem, de repente, sem lugar? Nestas novas circunstâncias, não resta outra hipótese que não a do afrouxamento, e até mesmo o fim, de uma amizade nos moldes conhecidos e legitimados até então. Serão perdas necessárias, estas, das quais pouco se fala, ou se fala em surdina?
Dilemas – ou guiões – possíveis
– Manuel, inconformado pela decisão da filha, que trocou o João pelo António, que andou lá fora a estudar e é de poucas falas. É do João que Manuel sente falta nas petiscadas e durante os jogos do Benfica ou do Porto. O António nem gosta de futebol e é alérgico ao glúten.
– Mariana sente falta da sua companheira de treinos e de compras, geralmente aos sábados à tarde. O filho disse-lhe que era incompatível com a ex companheira e que ela não soubera merecer a confiança dele, e esperava que Mariana o apoiasse, não alimentando futuros contactos com quem ficou fora de cena.
– Miguel era o genro perfeito até ser apanhado em flagrante delito pela agora ex unida de facto Maria. Ela não suporta a ideia de ver a mãe sentindo-se mais abatida que ela mesma, com a ausência forçada de Miguel, com quem a mãe de Maria partilhava os gostos pela jardinagem e a bricolage, além dos jogos do Facebook.
– Júlio apresenta a nova namorada aos pais e estes recebem-na com a mesma amabilidade de sempre, mas sem o brilho nos olhos que tinham pela Leonor, a alma da casa, que desapareceu sem deixar rasto e, ao que parece, emigrou.
O que se espera de si (o que os filhos secretamente desejam)
– Desapego qb: ser capaz de abrir mão do seu genro (ou a sua nora) de sonho, projetados naquele rapaz ou rapariga que frequentava a sua casa
– Neutralidade: fugir à tentação de cultivar os hábitos de convivência no registo “antes da separação” com os(as) ex dos seus filhos
– Aceitação: mesmo que “um dos nossos” tenha entrado em ‘default’ e sem resgate possível, esperará ser compreendido, mesmo que seja censurado
O que deve evitar sempre (para sair a bem do dilema)
– Tratar o(a) filho(a) como um seu semelhante: o papel de pai ou mãe são distintos do de amigo ou da relação que se tem com o grupo de pares. Aqui, a sua função é aceitar a situação, mesmo que discorde das opções e condutas dos descendentes
– Opinar: a um descendente faltará o distanciamento necessário para aceitar, sem personalizar, as preferências dos pais face às pessoas que lhes foram, e serão, apresentadas: abster-se de comentários é a atitude sensata
– Tomar partido: tenha ou não de abraçar o estatuto de ex sogro(a), lembre-se de que nas relações muito próximas entre pais e filhos, partilhar pensamentos genuinos é tão melindroso como ocultá-los. Mentalize-se de que faz parte ficar na posição temporária, mas incómoda, do “preso por ter cão e preso por não ter”.
Há alguns anos, ter um genro ou uma nora era um posto, mas também um estatuto sentido como parcialmente indesejado. Por lembrar que se chegou, efetivamente, à meia idade. Por ser tradicionalmente conotado com o papel de chato(a), ou sufocante, pelo frequente abuso de poder através de pequenas e grandes pressões para moldar comportamentos de outros em função de vontades próprias (exemplo: ter netos e ser, em fantasia, pai ou mãe pela segunda vez, impor regras familiares ao novo membro da família).
Hoje, que a regra é comprometer-se durante o tempo que o amor – ou o apetite, ou a ilusão partilhada – durar, não há como treinar-se para lidar com os traumas com t pequeno que acabam por ser as separações: as nossas, que o são, eventualmente, para os nossos filhos, como as deles serão para nós. Uma surpresa, tantas vezes desejada, que nos retira da zona de conforto e familiaridade que se supunha garantida.
No território incerto e promissor das exceções à regra, há ligações que sobrevivem a lutos e são bem toleradas pelos velhos e novos protagonistas. Como na Trova do Vento que Passa, há sempre alguém que resiste. E dá corpo à utopia, pelo talento ou arte de relacionar-se sem atavios nem fantasias de perda.