O Sr. Agostinho Canhão não tem medo da solidão. Quando não sabe o que fazer, toma banho. Há quem lhe diga – as duas outras pessoas com as quais tem tido contacto nos anos recentes – que não o deveria fazer com tanta frequência, que tanto convívio com a água faz mal à pele, mas a verdade é que no farol tem pouco serviço e tomar banho, diz-me, organiza-lhe as ideias (já as pessoas, essas, tendem a irritá-lo). Por outro lado, não está propriamente a gastar água, porque são de mar os banhos que toma. O sal é já o tempero natural do seu espírito. Mergulha tanto de dia, como de noite. Algumas pessoas – não mais do que duas, felizmente – teimam irritantemente que é perigoso, sobretudo à noite, desde logo porque o faroleiro não estará no respetivo posto, para dar o alerta de náufrago à deriva. Dizem-no marinheiros de água doce, gente que não conhece o mar que rodeia a pequena ilha em que vive há vinte e seis anos e quatro meses, segundo contas de pouco rigor.
Enquanto para a maioria de nós o tempo representa uma abstração que apenas ganha concretude quando representada pelos ponteiros, ou pelo mostrador digital de um relógio, para o velho faroleiro ele faz-se de outro modo. O Sr. Agostinho Canhão não precisa de unidades de medida definidas para saber da sua evolução – sente-o passar através da deslocação do sol pelo azul e da mudança de temperaturas entre o alvorecer e a noite – e, por vezes, pode até jurar que o sente parar, como se estivesse a descansar, ou a aproveitar o melhor que dado momento tem para oferecer, só depois retomando o seu devir. É assim, diz-me, quando se enfia nas águas com o sol a pique. Nesses momentos, não pensa em nada e, à exceção do levíssimo embalo das ondas que chegam à ilha, todo o mundo se suspende. As águas aqui são calmas e tão mornas, assegura-me, que ninguém diria que são portuguesas.
Só se mantém em funções porque para ali ninguém quis ir. O organismo que tutela a atividade do farol – o mesmo que mensal e irritantemente lhe deposita numa
conta o dinheiro que não usa e que pensa deixar em testamento ao clube da sua terra, o Grupo Desportivo Odeceixense –, aumentou a remuneração e a frequência das visitas do barco que leva o munício e a correspondência, mas deu em nada. Arranjou-se então burocrática forma de ali o manter, mesmo aposentado. Dizem que em termos geoestratégicos o farol é muito importante. Ele, que vive dentro dele há tantos anos, confessou-me não ter ainda entendido porquê. E os demais portugueses, tirando meia dúzia de fulanos irritantes que passam pelo ministério, também não, por certo. O faroleiro duvida de que haja no país mais de cem irritantes pessoas que saibam da existência daquele farol e daquela ilhota à qual chamaram de Pérvio Parálio e que, na sua ignorância de homem sem estudos, e até dar conta de que ambas as palavras podiam encontrar-se no dicionário, lhe soava a nome romano. É um dos dois únicos faroleiros a tempo inteiro ainda em atividade em Portugal. O outro, segundo me disse, vive com a família no farol da Barra, em Aveiro, e deve ser um tipo bastante irritante. Já a família do Sr. Agostinho Canhão, em Pérvio Parálio, são as aves, os peixes e os ventos – conhece-os todos e com todos os sentidos.
Deslocou-se ao continente pela última vez quando irritantemente o chamaram para fazer irritantes exames médicos, vai para sete anos. Ninguém parece sentir a minha falta, acrescentou, com caligrafia de escola primária. A sua grande tristeza tem, aliás, que ver com a escola. Por um lado, passa grande parte das cartas que me dirige a desculpar-se por não saber escrever convenientemente, mas diz que as vírgulas o irritam quase tanto como as pessoas; por outro, lembra a todo o momento que não gostou de andar na escola. Ipsis verbis o cito: até aos seis anos eu era feliz mas quando entrei para a escola essa felicidade acabou ao comparar-me com os colegas percebi que era um menino pobre.
Quanto ao mais, setenta e seis anos fechados há dias e apenas uma dor birrenta na perna direita. Os ossos continuam rijos, exercita-se na praia todas as manhãs, antes do desjejum, e o coração, os pulmões e a demais aparelhagem interior não dão sinais para além dos que são comuns a toda a gente.
Não sei se foi maior surpresa saber da existência da ilha ou de que nela vivia alguém. O faroleiro mora num sítio tão pequeno e despovoado e ainda assim não há carta que me escreva – e é a cada mês que há quase três anos nos correspondemos – em que não se mostre irritado com alguém. Por isso, nunca se queixa da solidão. Na primeira missiva, contou-me que a maior surpresa desde que ali mora foi perceber que naquela ilha sopra um ar sempre novo – e demorou-se, para meu deleite, a contar as texturas, os aromas e diferentes forças dos ventos, que para ele são melhores do que pessoas.
Se quer o leitor saber de que modo tomei conhecimento da existência deste faroleiro e da ilha que habita, termino transcrevendo as últimas linhas da primeira carta, que, num fim de tarde de julho de 2017, me chegou às mãos, datada de 16 de novembro de 2011: encerro aqui este primeiro texto por necessidade de ir tratar do almoço nesta altura do ano transformo-me praticamente em cancrívoro tal a quantidade de caranguejos que invade a pequena praia na parte do ilhéu virada a sul se agora me está a ler significa isso que alguém encontrou a primeira garrafa por mim jogada ao mar contendo as minhas memórias da Ilha de Pérvio Parálio.