Fazia pouco mais de um ano que Francisca Van Dunem, provinda do Ministério Público, havia tomado posse como ministra da Justiça, quando se lembrou também de tomar posse como Juiz do Supremo Tribunal de Justiça. O caso insólito não mereceu reparo do Conselho Superior da Magistratura, onde a ninguém ocorreu que o princípio da separação de poderes era demasiado sério para ser tratado como uma mera formalidade.
Mas esse momento seria um mau prenúncio do que se poderia esperar e do que foi o seu mandato: nada. Agora, que a ministra anunciou que não fará parte do próximo Governo, é tempo de fazer o balanço do que fez a governante que mais tempo permaneceu como ministra da Justiça no pós-25 de Abril.
Ressaltam três erros capitais: não ter uma marca assinalável na promoção da pasta, ter enfraquecido o combate material à corrupção e ficar manchada por episódios de nomeações que envergonham Portugal.
O primeiro erro é percetível pela ausência de resposta à pergunta: que marca nos deixa a futura ex-Ministra? Foram feitas promessas de uma revolução digital e de uma simplificação dos tribunais, com uma ampla revisão do atual mapa judiciário. Volvidos seis anos, pouco ou nada se viu. A revolução digital foi afinal um prejuízo analógico, com um CITIUS a regredir nas suas funcionalidades, sem abranger sequer todas as fases dos processos (p.ex. inquérito e instrução penal), e a manutenção arcaica de certos procedimentos. Lembra a alguém que em 2021 ainda haja processos que são enviados por correio e o ato de consulta só possa ser feito presencialmente? A grande revisão do mapa judiciário ficou-se por uma superficial alteração da designação dos tribunais, pela reabertura de tribunais – investindo-se na quantidade ao invés de na eficiência – e por uma mudança que ainda não entrou em vigor para o Tribunal Central de Instrução Criminal (integrando o extinto Juízo de Instrução Criminal de Lisboa).
Por outro lado, quando os índices de perceção da corrupção em Portugal aumentaram (como revelou o relatório Barómetro da Corrupção Global 2021), há um falhanço absoluto neste combate. É que, além da perceção da população, os indicadores de combate à corrupção são preocupantes, mantendo-se graves deficiências no ordenamento jurídico e um elevado grau de inadequação num sistema que persiste em não ser reformado pela classe política, como demonstra a Transparency Internationalde 2020. Se dúvidas restassem quanto à ausência de esforços para lutar contra uma das piores doenças da democracia, basta ver o ato de contrição da própria futura ex-Ministra, ao admitir a falta de meios na magistratura, particularmente do Ministério Público para a investigação criminal.
Em terceiro lugar, diminuindo com complacência o grau de exigência e reconhecendo que a Justiça e o combate à corrupção são áreas complexas, o mínimo que se poderia ter esperado era que a futura ex-Ministra mantivesse a dignidade em momentos cruciais. Contudo, nem na esfera das suas decisões individuais, para as quais tinha poder e esfera de influência, isso se verificou. Em 2018, foi a porta-voz de uma intenção desprezível: não renovar o mandato de Procuradora Geral da República a Joana Marques Vidal.
É bom lembrar que esta foi uma das decisões mais atentatórias da autonomia das Instituições e da separação de poderes em Portugal, contrária ao excelente desempenho de quem acabou por não ser reconduzida e fundamentada num falso argumento jurídico – os mandatos não serem renováveis naquele tipo de casos. Como humilhante foi a nomeação de José Guerra para Procurador Europeu, por indicação de Van Dunem, contrariando a decisão do Comité de Seleção Internacional e colocando Portugal no centro do debate europeu pelas piores razões.
Na hora da despedida, o saldo é, pois, desolador: todo o tempo que teve para iniciar um caminho de combate aos verdadeiros problemas da justiça, como a lentidão, a perversidade ou corrupção, foi tempo perdido. Nada ficará para a história, que se encarrega de fazer esquecer os que não têm ousadia ou coragem para fazer o que tem de ser feito.
O que não nos deixa descansados é que depois (não) servir como Ministra, Van Dunem não se vai dedicar à sua vida privada. Vai administrar a justiça, na mais alta instância judicial nacional.
Mas sejamos sinceros: o problema nunca foi esta Ministra. O problema foi este Primeiro-Ministro. Porque nada nos leva a crer que Costa tenha querido escolher alguém que viesse fazer um bom trabalho, nem a verdadeira reforma da Justiça de que o país precisa como de pão para a boca, com um espírito reformista. E é desse espírito que Portugal precisa.
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