A vida em sociedade sempre coexistiu com a burla. Na fábula de Esopo, Prometeu esculpiu Aleteia (a verdade) para que esta fosse capaz de regular o comportamento humano. Tendo de repentinamente ausentar-se, Dolo (o espírito da trapaça), ambicioso, com os dedos sujos moldou uma estátua à semelhança de Aleteia, mas não teve tempo de terminar os pés. Ao retornar à oficina, Prometeu, impressionado com a semelhança, infundiu vida em ambas as esculturas. A imitação de Dolo – Pseudo – era um produto do subterfúgio, que caminhava de forma desordenada.
A mentira tem a perna curta, dizemos, mas na era da vida online, colados ao telemóvel, os “pés” são mais difíceis de visualizar. Partilhamos online informação pessoal, tornando simples, via as novas ferramentas tecnológicas, detetar situações de vulnerabilidade (a morte de um familiar, uma separação, doença…), “cultivar” relações (amorosas ou não) e ludibriar, com promessas de ganhos financeiros. Pseudo chega até nós via redes como o LinkedIn, o Tinder ou WhatsApp. Mas quem é Pseudo no mundo virtual?
Xi Jinping, nomeado, em 2012, secretário-geral do Partido Comunista Chinês, iniciou uma campanha anticorrupção no sistema do Estado, que lhe permitiu não só eliminar opositores políticos, mas também quebrar relações entre os funcionários do Estado e as tríades que dominavam o negócio do jogo em Macau, Hong Kong e Taiwan. Demonstrando enorme resiliência, as tríades transferiram-se para o espaço virtual. Embora inicialmente focadas no mercado chinês, hoje as potenciais vítimas são qualquer pessoa, em qualquer canto do mundo, com um telemóvel.
O negócio sofisticou-se, operando em rede. Existem “empresas” de recrutamento, que fornecem a mão de obra, atraindo para “empregos”, que parecem bem pagos, pessoas do Sudeste Asiático, África e América Latina. Estas pessoas tornam-se os novos escravos, vendidos a “call center”, impedidos de abandonar as instalações e sujeitos a tortura caso a sua performance seja baixa (ou seja, caso se mostrem incapazes de enganar os incautos espalhados pelo mundo). E, finalmente, grupos especializados em branqueamento de capitais.
No século XXI, a par dos narco-Estados, nasceram os Estados cibercrime, como Camboja, Mianmar, Laos. Os recursos dos sindicatos do crime são de tal forma vastos, que capturam o Estado. Pagam a funcionários que facilitam a entrada dos futuros “trabalhadores” e a polícias e agentes do Estado que fecham os olhos aos edifícios, cercados de arame farpado, onde operam dezenas de milhares de pessoas (no Camboja estima-se que 100 mil pessoas trabalhem nestes centros). E se, preferencialmente, estes centros se localizam em regiões remotas da fronteira que separa Mianmar e Laos, a impunidade cresceu e na capital das Filipinas, Manila, a agência anticibercrime opera hoje num complexo de escritórios até há pouco tempo ocupado por uma rede de criminosos. Agentes da autoridade circulam entre a sala de karaoke – onde os chefes se divertiam –, a sala de tortura, o call center e os dormitórios (onde, aliás, ainda permanecem os “trabalhadores” enquanto se tenta distinguir chefes de vítimas de tráfico).
Pseudo multiplicou-se. O combate ao cibercrime tornou-se, por isso, prioritário e exige ação concertada. No entanto, num mundo às avessas, a cooperação internacional tornou-se difícil. As melhores práticas parecem vir de Singapura, onde, nos espaços públicos anúncios advertem para os riscos, nas esquadras os agentes encaminham queixas para um centro, onde autoridades e bancos atuam de forma concertada, para tentar barrar transferências em criptomoedas (o esquema preferencial). O perigo não vem apenas da Ásia, existem esquemas mais simples continuamente a renascer. Os SMS falsos podem ser evitados logo que se imponha um número único e não replicável para entidades críticas (Estado, bancos, fornecedores de energia, correios…) – um processo que se arrasta, mas que em Taiwan já opera, trazendo confiança ao sistema e evitando burlas. E nós, individualmente, devemos abordar o tema com familiares e amigos. São o isolamento e a vergonha que permitem a Pseudo ser tão bem-sucedido.
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