Em 2012, tive oportunidade de assistir em primeira mão ao êxodo sírio que fugia da guerra e da destruição do seu país rumo à Europa via Turquia.
Na altura, pouco ainda se falava em fluxos migratórios e a crise de refugiados só começaria a ter expressão mediática em 2015. Nesses três anos, muitos foram os que perderam a vida, a esperança e a dignidade em campos no lado de fora de uma Europa que sempre preferiu pagar para não encarar os problemas, do que resolvê-los.
O avolumar do problema e o tempo perdido sem medidas levaram a que as ações por pressão da opinião pública tivessem chegado muito tarde e, sobretudo, tivessem sido ineficazes.
Vivia-se o terror do Daesh, anteriormente denominado de Estado Islâmico, que por sua vez sucedera ao ISIS ( Islamic State of Iraque and Syria ) e teve a sua origem numa dissidência dentro da Al Qaeda. Esta genealogia é importante para que possamos ler os acontecimentos que nos são relatados de forma mais ou menos objetiva.
É indiscutível que o regime de Assad se baseou num sistema autoritário e centralizado, sustentado pelo partido Baath e pela elite alauita. Este exercício do poder sob uma população maioritariamente sunita levou a uma série de protestos à sombra da Primavera Árabe, movimento pró-democracia que eclodiu em 2011 em diversos países árabes.
Pese embora a repressão política e as desigualdades sociais, o país gozava, até então, de uma certa estabilidade económica e social. Tal como acontecia com a Líbia – de Muammar al-Gaddafi- e o Iraque – de Sadam Hussein.
Durante a pesquisa que fiz para o livro Deixar Aleppo, baseado nos factos ocorridos na fronteira entre a Grécia e a Turquia naquele fim de Verão de 2012, pude contactar com várias pessoas de múltiplas faixas etárias e diversas camadas sociais, desde operários indiferenciados até professores universitários. Fugiam não do regime de Assam, mas sim do perigo dum estado islâmico radical que negava direitos às mulheres e que ameaçava mergulhar o país num retrocesso civilizacional.
Numa coisa as opiniões coincidiam: as manifestações que a comunicação difundia, sobretudo em cidades como Deraa, eram lideradas por indivíduos identificados como externos à Síria. Condenavam o facto de outras manifestações de apoio ao regime não terem a mesma cobertura e temiam a interferência internacional baseada em agendas que nada tinham a ver com democracia ou liberdade para o povo.
Assistiu-se, em seguida, a um escalar do conflito com a militarização dos movimentos de oposição que se fragmentou entre forças moderadas como o Exército Livre da Síria e os grupos extremistas da Frente Al-Nusra e, posteriormente, do Estado Islâmico, ex-ISIS. O país mergulhou numa guerra civil que fez milhares de deslocados e outro tanto de mortos.
Mais uma vez, as coligações internacionais (Rússia e Irão por um lado, Ocidente e EUA por outro) entraram no palco da guerra.
Derrubado o regime de Al Assad, não me parece que o momento seja de grandes festejos e temo o futuro sobretudo em relação a minorias e às mulheres.
Abu Mohammed al-Jawlan, que lidera o grupo Hayet Tahrir al-Sham (HTS), foi um dos homens fortes da Al Qaeda e um dos fundadores da Frente Al-Nusra. Vemo-lo sempre rodeado de homens que nos fazem lembrar, de certa maneira, o Estado Islâmico, muito embora seja conhecido o seu diferendo com Abu Bakr al-Baghdadi, o homem forte do EI.
Evidentemente que não podemos ignorar ou branquear o ataque supostamente levado a cabo pelo regime sírio sobre os seus concidadãos. Como não podemos ignorar as cadeias de alta segurança ou as prisões ilegais norte americanas contra suspeitos extremistas. Aliás as instalações prisionais mostradas são muito semelhantes a Guantanamo ou outros “buracos” clandestinos usados pelos norte-americanos, também eles senhores de ações de tortura condenáveis.
Porque nestes cenários não existem guerras santas, nem santos e demónios! Não podemos aceitar todas as atitudes só porque nos são apresentadas em prol dum bem maior! Necessitamos de usar juízo critico, até porque, afinal, são as pessoas, as anónimas pessoas que sofrem os desvarios dos senhores da guerra.
A Síria mergulhou, temo bem, numa nova era de instabilidade e guerra, com diferentes fações e grupos em disputa. Muito à semelhança do que aconteceu após o derrube e morte dos líderes do Iraque e da Líbia. O retorno da população refugiada nos países vizinhos, segundo números locais, não é assim tão significativo. Há um “esperar para ver” que os mantém longe ainda das suas terras. E é até bem possível que venhamos a assistir a mais um movimento de fuga deixando Damasco.
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