Que os tempos estão a mudar, ninguém tem dúvidas. Que a mudança não parece ser para melhor, somos muitos os que temos receios fundados.
A instrumentalização da Justiça começa a ser cada vez mais visível, com situações que, sem diminuir a importância e a necessidade de serem investigadas, aparecem cirurgicamente em determinados momentos políticos.
Adaptando o raciocínio da Agatha Christie, para encontrar os culpados basta seguir a pista de quem aproveita esta mediatização.
Se acrescermos a estas manifestações de Justiça em praça pública, com divulgação por meios de comunicação social chamados antecipadamente para o acontecimento, outras que se promovem através de entrevistas a pessoas acusadas de pertencer a grupos neonazis, de tentativas de homicídio por xenofobia, a tempestade é perfeita e está a ponto de rebentar.
Como é possível que alguém que incita à violência e ao crime, seja entrevistado em prime time?
As audiências não podem justificar tudo sob pena dos meios de comunicação social serem cúmplices dum retrocesso civilizacional. Porque é disto que se trata: um retorno a um tempo de medo, sem liberdade de movimentos, de expressão.
Ver Mário Machado nas televisões incitando à desobediência civil, não acatando uma proibição do município de Lisboa, relativo à manifestação xenófoba marcada para o próximo fim de semana, não pode ser encarado como o exercício da democracia pluralista como alguns tentam justificar.
Quem afirma que na democracia cabe tudo não conhece verdadeiramente o conceito e muito menos a prática. Há linhas vermelhas bem definidas e que procedem da maior conquista e avanço civilizacional alguma vez alcançado, a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Em nome do pluralismo não podemos aceitar ataques à dignidade de outros seres humanos só porque são diferentes ou optaram por percursos distintos nas suas vidas privadas.
A dita manifestação recobre-se com a túnica inofensiva da defesa duma cultura, supostamente judaico-cristã, contra a islamização da Europa em geral e de Portugal em particular.
Ora, sendo o nosso um Estado laico, a coisa faz pouco sentido e é facilmente desmascarada por aquilo que realmente é: uma manifestação de caráter xenófobo que tem como único objetivo espalhar narrativas racistas e anti imigração.
A democracia é dos que querem um mundo igualitário que respeite o mais sagrado dos valores. Não o valor ou a supremacia dum nome de deus sobre outro. Mas o valor da humanidade que nos enumera a todos
Desconheço qualquer delito cometido na zona que Mário Machado denomina de islâmica. Pela minha parte, nunca me senti ameaçada naquele local, a não ser visualmente porquanto, em termos arquitetónicos é francamente doloroso. Mas esse é um crime de natureza estética, não ética e muito menos de cultura importada.
Diz o mesmo indivíduo, que é sem dúvida um consciencioso cidadão e presumo que se conte entre os portugueses “de bem, que o Martim Moniz é um praça cheia de muçulmanos que “por ali ficam“.
Curiosamente essa prática de ocupação das praças públicas para convívio é uma característica muito nossa! A minha geração cresceu em torno de praças e pracetas onde, durante o dia, era frequente as pessoas encontrarem-se, falarem, conviverem. Sobretudo as que, com menos posses, não se podiam dar ao luxo de permanecerem em cafés onde havia que consumir para poder ficar na cavaqueira com os amigos. E havia ainda as crianças que brincavam e enchiam de risos as praças.
A manifestação é contra isto? Contra a utilização do espaço público?
Tão pouco me consta que alguém tenha sido expulso daquela zona por não ser árabe!
O que está em causa, pois, para além duma manobra populista que serve que nem uma luva a determinada fação política?
Falam dum Estado permissivo, escancarado, perigoso.
Narrativa facilmente desmontada pelos números oficiais sobre segurança interna.
Não podemos negar que existem arestas a limar neste processo de inclusão. Mas todo o caminho se faz caminhando, aprendendo com os erros nossos e dos outros, adotando as boas práticas que nos colocam a nível internacional num patamar de que só temos a orgulhar-nos.
Mas não é isso que está em causa. O que incomoda determinadas pessoas é a diferença. São diferentes logo são perigosos. Este é o raciocínio simplista que tentam vender aos mais incautos.
Para além de completamente inconcebível, o tempo dado a um indivíduo que não esconde as suas ideias nem as suas ações ou propósitos, há ainda o fator “coincidência”.
A Praça do Martim Moniz e toda a área envolvente já há anos que tem esta frequência. Só agora, a meia dúzia de semanas duma eleição que pode mergulhar Portugal num pântano ingovernável, é que incomoda?
Aquele indivíduo está nas redes sociais, nas TVs a incitar à desobediência “pacífica”, sabendo todos quão pacífica é a sua atuação. E não é detido? Aguarda-se pacientemente que haja “acidentes”, quem sabe se fatais, para agir?
Na democracia não cabem todos, não! Não cabem os anti-democratas, os que consideram que a ditadura é um regime saudável, que advogam pena de morte, castração química, expulsão de imigrantes, perseguição de homossexuais…
Não, a democracia não é para todos. Não é para os que a não querem, não a respeitam e a consideram como um terreno onde tudo é permitido até o seu contrário.
Mas a democracia é dos que querem um mundo igualitário que respeite o mais sagrado dos valores. Não o valor ou a supremacia dum nome de deus sobre outro. Mas o valor da humanidade que nos enumera a todos. E, já agora, a todas também!
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.