No meio da enxurrada de notícias sobre os números da Covid-19, surgiu no início desta semana mais uma notícia de um naufrágio no Mediterrâneo de um barco com refugiados, desconhecendo-se o paradeiro e o destino de outros dois.
Esta notícia veio recordar-nos que existe mais vida para lá da pandemia e que, embora o nosso pequeno mundo esteja parado, os problemas pré-Covid não entraram em modo pause como se fosse um filme. Não, eles existem, estão aí por resolver e a tendência é para aumentar.
Se num país exemplar no combate a esta crise pandémica, há nichos de pessoas, de etnias que ficam nas franjas das medidas de emergência, imagine-se o que acontece no restante mundo!
As comunidades ciganas foram finalmente sinalizadas como áreas cinzentas onde é preciso tomar medidas imediatas. Se bem que, apesar das medidas tomadas, em boa hora, por este governo para resolver algumas questões da população irregular mas contributiva em Portugal, várias situações ficaram ainda por acautelar e terão de merecer uma análise mais fina.
A grande questão em termos de fluxos migratórios ainda não nos toca diretamente, mas é expectável um outro tipo de migração, a migração Covid, que inevitavelmente nos baterá à porta
A grande questão em termos de fluxos migratórios ainda não nos toca diretamente, mas é expectável um outro tipo de migração, a migração Covid, que inevitavelmente nos baterá à porta.
Se é certo que os números da epidemia no continente africano são escassos e, a serem fidedignos, não se revelam alarmantes, o certo é que, ao estarmos a analisar a situação económica após a pandemia, estamos a esquecer que ela trará consigo uma ruptura de consequências extremas em países de economias frágeis, cuja população tem uma média etária muitíssimo jovem e que não encontrará resposta de sobrevivência nos seus países de origem.
Sendo minimalista, a principal razão das migrações sempre foi a sobrevivência, fosse ela devido à fome, à falta de recursos ou à guerra.
Neste momento ou dentro de muito pouco tempo, essa sobrevivência irá dever-se, não apenas à escassez de alimentos nessas regiões, como à escassez de medicamentos e de estruturas sanitárias.
As instituições internacionais que estudam e seguem o fenómeno verificaram, nas últimas semanas, uma ligeira diminuição destes movimentos. Rumar para a Europa era um pouco como sair da frigideira e aterrar no fogo.
Mas como, de facto, este é um vírus democrático e que não conhece fronteiras, os movimentos começam novamente a surgir à medida que a pandemia começa a espalhar-se pelo continente africano.
É já tarde para evitarmos o êxodo que se aproxima e que só poderia ter sido limitado por uma cooperação Norte/Sul que permitisse a fixação das populações nos seus países de origem
Atendendo à fragilidade dos sistemas de saúde da maioria daqueles países, haverá sem dúvida um novo fluxo baseado na procura de respostas ao nível sanitário, em nações mais aptas a fornecê-las e com as quais existe um elo, seja ele histórico, linguístico ou outro.
Isto significa que não apenas a Europa como um todo enfrentará uma nova crise humanitária decorrente em muitos casos da fragmentação económica associada ao alastramento da doença em África, como Portugal em particular (e dada a sua ligação aos PALOPs) terá aqui um desafio muito particular e difícil de gerir.
Ao nível europeu, trata-se dum cenário que nada pressagia de bom, uma vez que, em termos de solidariedade, todos os sinais têm sido para a sua ausência, em termos internos. Ora, se tal acontece dentro da União, imagine-se em relação a países terceiros.
Há semanas citei o diretor-geral do ICMPD (Centro Internacional para o Desenvolvimento de Políticas de Migração, em inglês), Michael Spindelegger, quando afirmou que a Europa não estava preparada para outra crise migratória como a que ocorreu em 2015. Mal ele sabia que estávamos precisamente na iminência duma outra com contornos ainda mais preocupantes e que coloca sérias questões não apenas do ponto de vista económico e legal, mas sobretudo do ponto de vista sanitário e humanitário.
É já tarde para evitarmos o êxodo que se aproxima e que só poderia ter sido limitado por uma cooperação Norte/Sul que permitisse a fixação das populações nos seus países de origem, promovendo a paz e a educação e deixando ao mercado empregador, em conjunto com os governos, a regularização da imigração.
Mas ainda estamos a tempo de prevenir novos cenários possíveis.
O que esta pandemia veio mostrar, entre outras coisas, é a necessidade de olhar e de atuar fora da formatação a que nos habituámos. Há que ousar e ter a coragem de alterar procedimentos e estabelecer planos a médio e longo prazo, com objetivos específicos e sobretudo globais.
Romper silêncios ensurdecedores, como o que que impera sobre os números que teimam em não aparecer sobre o que se passa na Grécia, nos campos de refugiados, nos centros de detenção temporária, quer ali quer em Itália.
A Covid-19 veio mostrar que nenhum homem é uma ilha e que, mesmo confinados, estamos todos ligados por um destino comum.