Há gestos de amor que nos amaciam a vida. Este é um deles.
Comecemos pelo princípio.
O setor da restauração, já todos sabemos, foi um dos mais afetados pela pandemia. O golpe foi duro e veio sem avisar, mudando de um dia para o outro as perspetivas de muitos pequenos negócios, que nasceram para alimentar a folia de um país que se redescobria através do olhar dos turistas de todos os cantos do mundo. Essa festa foi bonita de se ver mas parou tão de repente que no ar ainda subsistem dúvidas: será que tudo isto não passa de um pesadelo?
A verdade é que as estimativas oficiais são negras. De norte a sul do país espera-se, no setor, uma vaga de falências e de desemprego de proporções bíblicas. Isto apesar do desconfinamento que, entretanto, abriu uma fresta de esperança, mas tão pequena que ninguém sabe quantos vão conseguir passar por ela.
Quem jogou tudo nesta área de atividade, sente o coração apertado. Mas para muitos, como é o caso de Mustafá Kartal, proprietário do restaurante Palácio do Kebab, em Lisboa, a opção não é parar. Ele, que tem um palácio, defende-o como se fosse um castelo. E faz isso com um sorriso encantado, porque a generosidade, quando genuína, é hoje ainda mais cintilante do que sempre foi.
Há histórias que são férteis em duplos sentidos, têm múltiplas camadas de significado. Mas já lá vamos…
Mais do que teimosia, este homem tão profundamente, inevitavelmente, surpreendentemente humano, mostra ter fé, ou se quisermos, resiliência. Orgulhoso da gastronomia da sua terra de origem, a Turquia, Mustafá manteve sempre a cozinha a funcionar através de um serviço de take-away. Essa foi a sua frente de batalha em tempos de confinamento. Mas tem outra: quem passar pelo Palácio do Kebab, pode ler, num cartaz colado à porta, um anúncio que diz: “Gratuito para quem não puder pagar”.
Mustafá pode estar aflito, sem saber qual será o rumo do seu negócio, mas enquanto dá o peito às balas não esquece quem sofre ainda mais. E fome é coisa que ele não consente que alguma vez passe à sua porta.
Este imigrante representa, na verdade, muitos homens e muitas mulheres que já sentiram a dor surda no peito, pessoas obrigadas a fugir dos seus países como se lhes tivessem aberto a mão à força e lhes tivessem tirado alguma coisa que era deles: o direito de viverem felizes no país onde nasceram.
Ele poderia ser um homem ressequido por deceções, revoltado por azedume. Mas não. É solidário e doce. E é enorme. Portugal e as dificuldades não o subjugaram, apesar de ter passado por muitos instantes difíceis, numa neblina de medo, a sensação prolongada de um nevoeiro.
Portugal já viu Mustafá numa atitude irada, quase bélica, quando, no dia 25 de Abril de 2016, por volta das sete da manhã, um grupo de mais de 20 jovens entrou pelo seu restaurante adentro e tentou levar a caixa registadora e bebidas. Ele defendeu o seu espaço e o seu empregado como se fosse a última coisa que faria na vida (tudo foi filmado por um telemóvel e chegou às televisões), porque pertence àquele grupo de pessoas que sabe o que é somar e subtrair permanentemente, fazendo contas todas as semanas para sobreviver. Como ele, tantos imigrantes que vivem assim, em guerra com o mundo, muitas vezes a sentir-se pisados. Pessoas que acordam e vêem atrás de si e à sua frente uma desesperança absoluta, que arriscaram a vida para fugir do seu país, que se sentem em carne viva, esfolados, com os seus corações arrancados.
E ainda assim há alguns como Mustafá, que se dá ao luxo de distribuir compaixão e empatia.
Falar deste gesto do Mustafá é também falar de como ele derruba os preconceitos e as ideias feitas em relação aos migrantes e refugiados em Portugal. Por cá, são eles que se ocupam dos trabalhos que nós, portugueses, não queremos fazer. Os chamados trabalhos 3D: dirty, dangerous and difficult. O mais recente relatório do Observatório das Migrações revela que os imigrantes estão mais representados nos grupos profissionais de base (51% em sectores como a construção, indústria e trabalhos não qualificados de diferentes tipos) e têm remunerações médias inferiores às dos trabalhadores portugueses; correm maior risco de pobreza e estão mais vulneráveis ao desemprego. Porém, ficam menos tempo sem trabalho, desde logo, porque aceitam as piores ofertas, com as piores condições.
Apesar destes factos, há entre nós a perceção de que os imigrantes são uma ameaça, que usam e abusam dos recursos do Estado, mas isso não corresponde à verdade. Só para citar um dado: em 2017 a relação das contribuições e das prestações sociais dos imigrantes atingiu valores inéditos desde 2000, com um saldo financeiro positivo de 514 milhões de euros. Ou seja, os imigrantes contribuíram com 603,9 milhões e beneficiaram de apenas 89,6 milhões. Conclui-se que a sua contribuição para a economia do país é bastante positiva.
Em Portugal, a xenofobia existe, mas parece que os xenófobos desapareceram todos. Ser imigrante e negro, por exemplo, é ter de assistir à discriminação em situações tão diversas como pedir um empréstimo bancário, alugar uma casa, conseguir um emprego e múltiplas outras situações do quotidiano.
Escrevo esta crónica numa semana particularmente dura, em que o tema do racismo volta à ordem do dia, por causa de George Floyd, morto por um polícia de Minneapolis, nos Estados Unidos. Que a história do Mustafá Kartal evite que a descrença se abata sobre nós com dilacerante nitidez e que o mundo encaixe um bocadinho mais no seu lugar – que não seja apenas uma trégua que sabemos fugaz.