Imagine-se, por absurdo, a seguinte situação: um filho do embaixador português num país do Médio Oriente encantou-se por uma colega da escola local. Teve a ousadia de lhe roubar um beijo. Os irmãos dela não gostaram e decidiram apresentar queixas às autoridades alegando crime de desonra e violação, previsto e punido com pena de morte. O estado português não podia deixar que isso acontecesse, certo? Pois serve a imunidade diplomática, prevista desde 1961 na Convenção de Viena, para proteger as famílias dos diplomatas deste tipo de situações, e de outras bem mais complexas como os casos em que são inventados crimes para atentar contra aquelas pessoas, e no fundo, os Estados.
É evidente que o caso de Ponte de Sor impressionaria sempre, estivesse ou não em causa o complexo tema da imunidade diplomática. Facto: um jovem de 15 anos foi violentamente agredido por dois rapazes, filhos do embaixador iraquiano, até ficar em coma e estes não lhe prestaram auxílio. O resto não se sabe ainda com exactidão, e há versões contraditórias para a história: quem começou e agrediu primeiro, quem esteve envolvido, se os rapazes iraquianos agiram em sua defesa tal como alegam.
Porém, a figura da legítima defesa tem limites muito claros na lei: só é legítima a defesa quando exista risco iminente e proporção nos meios. E há uma evidente desproporção entre agressões que deixam alguém em inanimado com gravidade, agravadas pela omissão de auxílio, e as potenciais ameaças ou agressões que possam ter causado esta conduta, atendendo à boa saúde que evidenciavam na perturbadora entrevista que deram à Sic, onde a frieza e calculismo nas declarações ficaram bem patentes.
Agora também é certo que os tratados internacionais são para cumprir sempre, e não só quando nos dá jeito. É verdade que a Convenção de Viena foi estabelecida num contexto completamente diferente, em plena Guerra Fria. É verdade que no espírito da lei não está proteger agressores contra crimes deste tipo. Mas a verdade é que estamos a ela obrigados, umas vezes potencialmente a nosso favor e das nossas representações diplomáticas, outras vezes contra os nossos cidadãos.
Brotam especialistas em direito internacional público e penal debaixo de cada pedra da calçada. Há opiniões para todos os gostos, posturas radicais, cândidas e utópicas sugestões. Só que, no mundo real, pouco ou nada há a fazer se os próprios e o Iraque não quiserem colaborar. Mesmo pondo de parte as mais do que certas consequências da mais antiga regra das relações inter-estados, que é a da reciprocidade (uma espécie de olho por olho, dente por dente em grande escala), temos poucos meios ao nosso alcance. Existindo acusação do Ministério Público, o Estado pode e deve pressionar para que seja levantada a imunidade diplomática, como bem afirmou Santos Silva, mas depois cabe ao Iraque decidir se deseja ou não levantá-la. Injusto, indecente, inadmissível? Talvez. Mas a história e o direito internacional estão carregados destes casos, mesmo em situações em que estão em causa homicídios e pedófilia. Que dirá a rapariga alegadamente violada por Julian Assange do facto dele se ter refugiado na embaixada do Equador em Londres?