Em semana de congresso da Associação Nacional de Municípios, para consagrar a vitória do PSD e seus aliados nas eleições de 12 de outubro, é confrangedor verificar o regresso sem complexos da arrogância centralista e o total desaparecimento do discurso de afirmação local que marcou a história do partido sobretudo no norte e centro do País.
A lógica da concentração de poder nacional e regional acentuou-se com a reconquista da maioria dos municípios, sobretudo nas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto, com a confirmação de Lisboa e Cascais e a reconquista de Sintra, de Vila Nova de Gaia e do Porto. A eleição de Carlos Moedas e de Pedro Duarte para a liderança dos dois Conselhos Metropolitanos representa uma governamentalização destas estruturas, tornando-as inócuas extensões do centro de poder.
Já a gestão dos grandes municípios de Lisboa e Sintra consolida um caminho de parceria privilegiada com o Chega que permitiu já a concentração de poderes por Carlos Moedas, o nepotismo na atribuição de cargos de gestão em Sintra e a reabertura para a expansão do alojamento local, prosseguindo a gentrificação de Lisboa.
Como estamos longe do PSD de Rui Rio que acordou com o governo PS da geringonça a Lei-Quadro da Descentralização, exigiu uma Comissão Independente sobre a Regionalização e apoiou o maior alargamento de sempre dos poderes municipais em áreas com as da educação, da saúde e da ação social entre muitos outros setores.
Face ao garantido bloqueio por Marcelo Rebelo de Sousa de qualquer iniciativa em matéria de regionalização, foi lançado pelos governos de António Costa, em articulação com a descentralização de competências para os municípios e freguesias, um processo de democratização das CCDR em que as direções deixaram de ser nomeadas pelo Governo e passaram a ser eleitas de forma indireta pelos autarcas de cada região.
Estávamos longe da vocação descentralizadora de ilustres figuras do PSD como Valente de Oliveira ou Manuel Porto, mas a criação de polos de decisão com uma racionalidade democrática ao nível das 5 regiões do continente, que deveriam gradualmente absorver os poderes das estruturas desconcentradas dos vários ministérios, era um caminho virtuoso para a progressiva afirmação de estruturas de efetiva governação regional.
Consolidada que fosse a gestão à escala regional por lideranças eleitas de áreas muito relevantes da gestão pública, anteriormente dependentes do Terreiro do Paço e compostas por obscuros burocratas ou aparelhistas partidários nomeados para as estruturas distritais ou regionais dos ministérios, seria então possível no futuro colocar os portugueses perante a opção pela sua eleição por sufrágio universal e não só pelos autarcas de cada região.
É certo que os vários corporativismos sempre se opuseram à regionalização da decisão administrativa numa ótica de proximidade e à democratização das CCDR. Uns por convicção centralista, desconfiando sempre das vontades mais próximas dos territórios e das populações, outros porque sempre acharam que a sua influência corporativa seria melhor exercida junto dos governos do que da pluralidade de vontades locais.
Estruturas como a CAP ou a FENPROF são exemplos do pior corporativismo e da defesa do centralismo, seja na atribuição dos subsídios e outros fundos europeus destinados à agricultura, seja na ortodoxia dos concursos nacionais para professores. Na sua coerência reacionária, sempre se opuseram a qualquer atribuição às CCDR de competências nas suas coutadas de interesses e o eterno Mário Nogueira chegou a manifestar-se contra a descentralização à porta do Congresso da ANMP.
O Governo de Montenegro tinha já dado sinais das suas convicções ao banir o representante dos municípios da administração dos portos de Lisboa e Setúbal ou ao concentrar os fundos não usados do PRR no Banco de Fomento, sem qualquer controlo territorial ou parlamentar. Mas a hipocrisia centralista atingiu agora o seu auge com o esvaziamento do processo de democratização das CCDR.
Por um lado, nada foi dito sobre uma nova fase da descentralização de competências para os municípios iniciada com a Lei-Quadro de 2018, tal como a revisão da Lei de Finanças Locais foi um tema ignorado este fim de semana no encontro dos autarcas do PSD.
Já a nível regional, é assumido o retrocesso com a multiplicação de vice-presidentes das CCDR nomeados diretamente pelos ministros, deixando um Presidente eleito de um órgão sem estrutura de coordenação colegial como figura decorativa.
Depois do vice-presidente para a Agricultura, a funcionar como mundo à parte sem sujeição a qualquer estratégia ou planeamento definidos a nível regional, pretende replicar-se o modelo nas áreas da educação, grande feito da Reforma do Estado anunciada em julho por Gonçalo Matias, e agora também na área da saúde aumentando a entropia entre a Direção Executiva do SNS e as 39 administrações das ULS.
Mas o golpe final, sem qualquer reação dos regionalistas do PSD, dos autarcas em geral ou dos partidos da oposição foi a aprovação do novo modelo das CCDR no Conselho de Ministros de 28 de novembro. Depois da destruição pedra a pedra do modelo de CCDR democráticas com competências alargadas, temos agora o modelo global que não constava do programa eleitoral, nem foi tema de debate público, mas que tem o carimbo garantido de Marcelo Rebelo de Sousa.
As CCDR passam a ter um presidente e um vice-presidente eleitos pelos autarcas e CINCO vice-presidentes e um administrador nomeados pelo Governo. O objetivo confessado deste exercício de paranoia centralista é garantir ”uma coordenação direta e articulada das áreas da educação, saúde, cultura, ambiente e agricultura”.
Relativamente a estas áreas, pelo menos, a lei é clara que quem manda é o ministro a partir da sede da Caixa Geral de Depósitos, não existe qualquer visão articulada ligada à coordenação e desenvolvimento regional e o presidente da CCDR não coordena estes 5 vice-presidentes, relativamente aos quais fará figura de “verbo de encher”.
A situação será ainda mais patética e símbolo de retrocesso na Reforma do Estado no Alentejo ou no Algarve onde, face aos resultados das eleições autárquicas, é provável a eleição de presidentes indicados pelo PS. Mas, triste sinal dos tempos, também não vimos manifestações de grande indignação no encontro dos autarcas do PS relativamente a todo este retrocesso nos processos de descentralização regional e municipal.
Pelo retrocesso na descentralização para os municípios e pela destruição da democratização das CCDR, o prémio Laranja Amarga de hoje é para o antigo autarca sem memória Castro Almeida.
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