Desde 1999 que a ONU decidiu assinalar o dia 25 de novembro como o Dia Mundial para a Eliminação da Violência contra as Mulheres em homenagem às três irmãs Mirabal, da República Dominicana, detidas, torturadas e assassinadas a 25 de novembro de 1960, durante a ditadura de Rafael Trujillo.
A violência doméstica é em Portugal a modalidade de crime mais reportada nos últimos relatórios de segurança interna, tendo os casos denunciados em 2024 superado os 30 mil, mas, estranhamente, despareceu das prioridades de política criminal do Governo mais securitário da nossa democracia. A única vez que Luís Montenegro se referiu ao assunto não foi no tom dramático que usa para invadir os telejornais a associar insegurança aos fenómenos migratórios, mas, pelo contrário, para dizer que a situação não estaria pior mas que provavelmente haveria apenas mais denúncias às autoridades.
Infelizmente também neste caso as forças de segurança voltaram a desmentir Luís Montenegro ao anunciar a semana passada que, até setembro, os casos de violência doméstica reportados ultrapassaram já os 25 mil, apontando para o pior registo da última década.
A relação entre a evolução do fenómeno da violência doméstica e o reporte dos casos não é um tema fácil. A posição tradicional de que “entre marido e mulher não metas a colher” levava a uma tolerância da violência e a uma escassa disponibilidade das forças de segurança para empenhar meios neste tipo de criminalidade, exceto nos casos extremos que levavam até à assistência hospitalar ou ao homicídio.
A alteração do quadro cultural relativamente a casos que não podiam ficar na clandestinidade do lar levou a profundas alterações no comportamento das forças de segurança e dos profissionais de saúde. Hoje, cerca de 75% das esquadras e postos policiais dispõem já de espaços com privacidade para apresentação de casos de violência doméstica e de agentes com formação especializada nesta área. Igualmente, os profissionais de saúde evoluíram no rastreio de casos de “quedas” suspeitas ou “nódoas negras” mal explicadas. Mesmo assim, dizem os estudos que provavelmente a maioria dos casos que não envolvem violência física extrema nunca chegam a ser reportados. E durante a pandemia gerou-se a controvérsia sobre se a diminuição dos casos denunciados era real ou um resultado perverso do isolamento geral da época.
Em 86% dos casos de violência doméstica o agressor e a vítima têm uma relação de proximidade como cônjuges, namorados ou anteriores parceiros desavindos, e em 67% dos casos as vítimas são mulheres. Muitas vezes, a denúncia é ingrata, não só pelas consequências sociais da exposição da situação, mas também porque 63% dos casos são arquivados pelo Ministério Público e em apenas 14% dos processos é deduzida acusação.
Mesmo com estas limitações, verificaram-se em 2024 mais de 2400 detenções por violência doméstica, 42% das quais em flagrante delito, e estes casos justificam cerca de metade dos casos de vigilância com pulseira eletrónica aplicados em Portugal. Em áreas afins têm crescido os casos de violência contra menores e contra idosos, na maior parte das vezes igualmente no quadro de relações familiares ou análogas. Infelizmente, a violência doméstica só é notícia nos 23 casos de homicídio do ano passado ou quando envolve figuras mediáticas.
O que surpreende é que o tema parece ter deixado de ter visibilidade pública estando mesmo ausente das intervenções das três ministras responsáveis pela Justiça, Segurança Interna e Igualdade, Rita Júdice, Lúcia Amaral e Margarida Balseiro Lopes.
A questão assume particular gravidade quando em 2024, num quadro de estabilização da criminalidade violenta e grave, se verificou um crescimento em cerca de 10% dos crimes de violação, que superaram as cinco centenas de casos, cerca de metade dos quais num contexto familiar ou de relacionamento próximo.
Desviar a atenção da prevenção destas áreas que lideram a criminalidade reportada, ou pior ainda desvalorizar a sua gravidade comparativamente com outros tipos de crime, insere-se numa deriva neoconservadora que começa por achar normal a espionagem dos telemóveis entre parceiros, considera banal a humilhação ou a violência no namoro e leva a uma retração global da afirmação dos direitos das mulheres.
Ao contrário do que sucedeu durante os anos dos Governos do PS, o ano passado já não se viu a presença dos responsáveis políticos ou das forças de segurança na marcha promovida pelas associações de defesa dos direitos das mulheres para assinalar o 25 de novembro. Neste dia, a atenção do Governo Montenegro parece estar totalmente concentrada na releitura histórica dos acontecimentos militares da data que permitiu, em 1975, dar continuidade aos trabalhos de redação da Constituição de 2 de abril de 1976.
O retrocesso dos direitos das mulheres perante uma apatia generalizada, até dos movimentos feministas, não é uma ficção alarmista como se viu recentemente nos Estados Unidos nas decisões do Supremo Tribunal Federal relativamente ao aborto. Igualmente, na Europa, a Convenção de Istambul, de 2011, para a Prevenção e Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica, ainda não foi ratificada por 5 países da União Europeia, foi denunciada pela própria Turquia que na altura a acolheu e promoveu, e, recentemente, pela primeira vez na União Europeia, o parlamento da Letónia aprovou uma lei, entretanto vetada pelo Presidente, para o abandono da Convenção.
Os direitos das mulheres saíram da agenda governativa, ainda ninguém sequer reparou que existe uma Secretária de Estado da Igualdade e pelo desaparecimento do combate à violência contra as mulheres, a ministra de quase tudo e quase nada, até da igualdade, Margarida Balseiro Lopes, estreia-se hoje com o prémio Laranja Amarga.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.