As convenções e demais normas de direito internacional e de direito internacional humanitário são das maiores conquistas civilizacionais do século XX, resultantes da crescente consciência internacional da necessidade de estabelecer regras para regular a barbárie da guerra e, por outro lado, para criar princípios de convivência da comunidade internacional aplicáveis para lá das divergências políticas e ideológicas.
As quatro Convenções de Genebra, adoptadas entre 1864 e 1949, são a raiz do Direito Internacional Humanitário, estão na origem da existência da Cruz Vermelha Internacional e de regras sobre armas proibidas, tratamento humanitário de prisioneiros de guerra, proteção das populações civis, acesso a apoio médico e humanitário e proibição de uso da fome como arma de guerra.
O atual sistema de direito internacional tem por núcleo essencial o sistema das Nações Unidas e das suas várias agências especializadas e contempla regras de regulação política de conflitos, um sistema jurisdicional, que tem por braços armados o Tribunal Internacional de Justiça e o Tribunal Penal Internacional, e regras aplicáveis a espaços de utilização comum das nações, como o princípio da liberdade de circulação pelos mares.
É essencial para a sua eficácia a aceitação das regras do sistema por toda a comunidade internacional e coerência na reação às violações de regras.
Hoje os Estados Unidos e Israel, duas democracias essenciais a nível global e na sua área de influência, são dois perigos para a ordem internacional, quer pela contestação violenta das regras que levaram décadas a consagrar, quer pela afirmação unilateral do primado da força.
Portugal e as restantes democracias estão hoje confrontadas com a situação particularmente difícil de terem de defender o primado do direito internacional, do respeito pelos direitos fundamentais e a afirmação dos valores das sociedades liberais não só face às autocracias de várias cores, mas, igualmente, relativamente a aliados tradicionais.
Saudamos a importância histórica do reconhecimento por Portugal do Estado da Palestina, mas tal implica uma atuação coerente e não pode ficar por uma declaração simbólica meramente retórica.
Luís Montenegro esteve bem ao condenar o ataque à sinagoga de Manchester, mas nunca o ouvimos de viva voz condenar os milhares de mortos civis na faixa de Gaza. Só ontem foram mais 52 mortos, incluindo mais um membro da ONG Médicos sem Fronteiras.
Nunca em qualquer guerra tantos jornalistas identificados, médicos e demais pessoal de saúde ou membros de ONG de natureza humanitária foram mortos como alvos de ataques de um estado membro da ONU.
Foi o Tribunal Internacional de Justiça que abriu o processo contra Israel por genocídio pelo uso da fome como arma de guerra e pelo impedimento de acesso de ajuda humanitária. E foi o TPI que emitiu mandados de captura contra os responsáveis do Hamas, entretanto já mortos por Israel, e contra Netanyahu que ainda está em liberdade e se desloca com regularidade aos Estados Unidos.
O que aconteceu com a flotilha internacional que se dirigia a Gaza, tratada pelo governo português como uma questão de apoio consular a cidadãos portugueses detidos no estrangeiro, é uma vergonhosa demissão de defesa do direito internacional e uma contradição com o recente reconhecimento da Palestina como estado independente.
Não está em causa o intuito político da flotilha, é uma forma de liberdade de expressão e afirmação de princípios com uma dimensão simbólica e romântica comparável à viagem do Lusitânia Expresso até Timor em 1992.
O problema é que a flotilha foi atacada e os seus ocupantes detidos em águas internacionais, numa verdadeira operação de pirataria internacional, com a realização de detenções e a transferência forçada para Israel de pessoas que se dirigiam ao território de Gaza, reconhecido internacionalmente, e também por Portugal, como parte da Palestina.
Só este ato contrário ao direito internacional, constituindo 4 portugueses como reféns, justificaria o firme protesto do Governo e a chamada do embaixador de Israel para prestação de esclarecimentos.
Mas Paulo Rangel deve também ser questionado por que razão aviões americanos transportando armamento para Israel, que foram impedidos de fazer escala em bases militares espanholas, estão agora a fazer escala nos Açores. E qual a posição do Governo português sobre o embargo, já determinado por vários países europeus, de material militar destinado a Israel para uso nos ataques aos territórios do estado da Palestina reconhecido por Portugal?
E mesmo no plano simbólico, não é mais possível manter a hipocrisia da neutralidade política de áreas como o desporto ou a Eurovisão. Depois ter sido suspensa a participação da Rússia nas provas da UEFA e no festival da canção depois da invasão da Ucrânia, não é possível tolerar a continuidade da participação de Israel, que nem sequer é um país da Europa, naqueles eventos. Vários países europeus já tomaram posição mas ainda não se ouviu Paulo Rangel sobre estes temas.
Israel foi uma generosa criação da comunidade internacional marcada pela vergonha global que foi o holocausto nazi, mas a sociedade progressista e igualitária dos kibutz das primeiras décadas do estado judaico tem muito pouco a ver com o apartheid de hoje entre judeus e árabes e a atual liderança defensora do genocídio dos palestinianos.
Nada de muito surpreendente se nos lembrarmos que Nethanyahu se tornou conhecido no início da sua carreira política por exibir um caixão e uma forca em comícios contra os acordos de paz de Oslo, em que se gritava “Morte a Rabin”, poucos meses antes do assassinato de Yitzak Rabin por um extremista judeu em 1995.
Era o que faltava não ser dada proteção consular a cidadãos portugueses detidos numa manifestação pacífica por uma ação militar de Israel em águas internacionais.
Mas pela dualidade de critérios na reprovação das ações terroristas contra sinagogas ou quando praticadas por Israel, o prémio Laranja Amarga de hoje é para Paulo Rangel.
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