Rufem os tambores. Portugal passou do estado de contingência ao estado de alerta e a quase-erradicação das restrições Covid trouxe de volta as festas, as discotecas, os amigos, os abraços. Acabam-se as filas à porta das lojas, termina o jogo das cadeiras vazias nos espetáculos e estádios de futebol. Pelo caminho, António Costa deixou cair o mote “libertação total” – sintoma óbvio de um pico de entusiasmo -, para se referir ao período como “terceira fase do desconfinamento”. É bastante mais sóbrio: passamos de uma salada tropical para uma sopa de coentros. De qualquer forma, o povo já entrou em modo Samba de Janeiro. Um ano e meio de peste, o espírito empedernido, a economia ligada ao ventilador, a exaustão prolongada à exaustão e, agora, o sucesso estrondoso da vacina, as condições reunidas para a abertura. Abre-te, sésamo. Com cuidado, como dizem as avós mais queridas.
A libertação começa no discurso e na comunicação. A diretora-geral da saúde Graça Freitas já admitiu pôr fim aos boletins diários da Covid-19. Vem tarde. Ao longo da pandemia, tive oportunidade de escrever sobre como a apresentação diária de números de casos, mortes e internamentos ajudou a instalar um clima nocivo para a saúde mental. Muitas vezes não se justificava. Hoje, ao fim de cerca de 550 boletins num ano e meio, está na hora de dar este sinal importante. No trabalho, deixa de ser obrigatório o uso de máscara, ficando à consideração das chefias. O teletrabalho deixa de ser recomendado. Fala-se em acabar com o isolamento para vacinados. De acordo com Graça Freitas, “vamos tender a voltar à nossa vida como era em 2019”. É, de facto, uma grande libertação.
Liberdade que se deve à vacina. Esta semana, o New York Times deu destaque ao caso português. De acordo com o título do artigo, “Em Portugal, não há virtualmente mais ninguém para vacinar” (“In Portugal, there is virtually no one left to vaccinate”). Facto. Com cerca de 86 por cento da população vacinada, Portugal está no topo dos países com maior cobertura vacinal: 98 em cada 100 pessoas vacináveis estão vacinadas. Devemos este recorde ao Serviço Nacional de Saúde, à coordenação da task-force, aos profissionais de saúde e a todos os portugueses – que aderiram em massa ao dever de combater o vírus. Se fosse por Portugal, a libertação seria, de facto, “total”. Mesmo com a cautela para o outono-inverno. O problema é outro.
Na Guiné-Bissau, apenas 0,4% da população está completamente vacinada. Em Angola, 3,1%. Em Moçambique, 5,6%. A realidade é pior no Quénia, no Uganda, na Somália, na Zâmbia, para não falar do Iémen, do Haiti, do Mali, da Eritreia. “Virar a página da pandemia” é uma expressão animadora, necessária e, no entanto, estritamente ocidental – sem tradução nas línguas e dialetos dos países mais pobres. Os merecidos aplausos aos responsáveis nacionais pela vacinação deverão coexistir com a luta pela imunização à escala global. Se não o fazemos por solidariedade, façamos porque é também do nosso interesse: enquanto a vacina não chegar a todos, ninguém estará a salvo. Cada ecossistema é um potencial caldeirão de novas estirpes, mais letais e resistentes às vacinas. Imunizar o mundo é a grande prioridade.
Há, de qualquer modo, motivos para celebrar esta fase. Precisamos e merecemos. Com a abertura das discotecas, espera-se que diminuam os aglomerados descontrolados de jovens nas ruas vistos nas últimas semanas. É uma catarse coletiva demasiado profunda para andar desacompanhada. A lamentável mancha da abstenção nas eleições autárquicas (46 por cento) é compensada com o recorde de estudantes inscritos no ensino superior (cerca de 412 mil). Falamos de “um novo máximo histórico”, de acordo com o Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior. Mesmo sem entrar no resultado das autárquicas, que dão margem para interpretações e estratégias, as forças extremistas da direita ultramontana perderam, ficando aquém de todos os seus objetivos – mesmo com o desgaste democrático a seu favor, mesmo com a pandemia, mesmo com as mais rasteiras estratégias. Portugal é um país equilibrado, de pessoas decentes, racionais, os eleitores não são tontos. Mas a urgência sai reforçada: combater sem trégua a desigualdade, a precariedade, os baixos salários. Portugal precisa de um futuro. Na recuperação pós-covid, entramos num ciclo onde a coragem e a competência serão cruciais.
Vem aí o frio. Vêm novas variantes. Nesta libertação parcial, será essencial manter o alerta, o dispositivo de saúde montado, o controlo de fronteiras, o uso de máscaras em espaços fechados e lotados. O vírus veio para ficar e haverá perturbações. Estaremos cá. Temos connosco o controlo da doença grave, que devemos à ciência, à vacina, à inteligência humana.
Há quem não tenha gostado de ouvir um primeiro-ministro falar em “libertação total”, mas é uma ideia simpática e necessária, apesar de precoce. Ainda não chegámos lá. Mas está na altura de nos libertarmos, de vivermos, de estarmos juntos, de arregaçarmos as mangas. Embora, que se faz tarde.
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