Esta semana, Portugal abeirou-se dos 6 milhões de vacinas administradas, com 2 milhões de pessoas totalmente vacinadas contra a covid-19. Com a pandemia sob controlo e os mais frágeis a salvo, a retoma progressiva das nossas vidas teima em expor uma verdade fatal: nenhuma teoria estrambólica nos valeu nesta crise. Só mesmo a ciência, a cooperação e a competência. Quem anunciou diabos, agoirando mentiras Pela Verdade, tecendo macumbas e conspirações furiosas, estava errado. Contudo a crise não acabou. Enquanto a inteligência e a liderança, de todos e cada um, se revela essencial neste pequeno vislumbre de normalidade, exige-se uma reflexão sobre o futuro pós-Covid, um sumário das lições da peste, onde o mínimo é tentar garantir que o triste fado não se repete. O vírus surgiu de uma relação abusiva com a natureza. É tempo de mudarmos de paradigma.
Na passada segunda-feira, a Liga para a Proteção da Natureza endereçou uma queixa à Comissão Europeia, alertando para a “destruição total” de cinco charcos mediterrânicos no sudoeste alentejano. Classificadas como habitats prioritários de espécies em risco, os ecossistemas teriam sido identificados num projeto de conservação financiado pela União Europeia. A destruição decorreu entre 2019 e 2020, vindo a ser revelada numa fotografia aérea do Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina. Estes charcos – porto de abrigo para diversas espécies da nossa fauna e flora, únicas no mundo – foram dizimados e cobertos com o plástico das estufas. Finito. Eram os últimos restantes de entre mais de cem que chegaram a existir naquela reserva. Foram terraplanados para erguer estufas. Para a LPN, “quando o lucro de atividades privadas se baseia na sua sobreposição aos valores naturais e humanitários é um sinal claro de que Portugal se afasta de um modelo socioeconómico sustentável e aceitável em termos civilizacionais. Este é um recuo evolutivo dramático que só com cooperação e sentido de responsabilidade se consegue impedir”.
É triste. Como tem ficado claro, a proliferação no país da agricultura intensiva, predatória dos ecossistemas – e do nosso futuro –, continua a decorrer num momento em que a ameaça climática ganha atenção. No primeiro confinamento, comovemo-nos com as imagens dos patos nos canais de Veneza, os veados e corças a saltitar no Japão, e sonhámos com um futuro pós-pandémico justo e equilibrado. Continuamos a pensar nisto, agora que esse tempo pode estar a chegar? A submissão da natureza a um modelo económico insustentável e descontrolado, que despreza a saúde e a sustentabilidade, tem de acabar. Renovar fontes de energia, reformular transportes, estudar alternativas, construir novas redes de produção e reorganizar o comércio. Se não o fazemos por ética, façamo-lo por sobrevivência: para além das alterações climáticas, que ameaçam equilíbrio na Terra, mais de 75 por cento das novas doenças na última década tiveram origem em animais, segundo a Organização Mundial de Saúde, derivando do comércio e consumo de carne, a par da destruição dos habitats. É o sistema global que tem de mudar e o sistema global começa em casa. Começa em Portugal. Começa agora. Assinalam-se esforços e mobilização civil, organizações sem as quais estaríamos no breu, mas teremos de passar das palavras à ação, exigindo políticas sérias de ação climática. Nas palavras de Inger Anderson, diretora executiva do Programa Ambiental da ONU, “fazer as pazes com a natureza ainda é possível, se começarmos agora”.
Os charcos destruídos estavam cartografados no âmbito do projeto “Life Charcos”, financiado por Bruxelas. Estavam identificados como tesouros de enorme importância para a biodiversidade e foram dizimados na mesma. A investigação é, de facto, o primeiro passo, todavia insuficiente se ficarmos por aí. Os alertas sobre o avolumar das estruturas de plástico da agricultura intensiva no Sudoeste surgem com frequência. Estamos a dar atenção? Sujeita ao parecer do Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas, a inserção numa área Parque Natural e Rede Natura 2000 tem de garantir a compatibilização da atividade económica com os valores da ecologia. Se não tem garantido, tem de passar a garantir.
O regresso ao normal terá a recuperação económica como prioridade, mas será crucial não retomarmos o caminho de um sistema em falência. É, portanto, tempo de debater, reorganizar e agir, lançando pedras, ou não teremos charcos para as receber quando for tarde.