Crónicas d.C.
Há um mundo antes, durante e depois do novo corona vírus. A comunidade organiza-se, a sociedade reinventa-se e a economia treme. Entre manifestações comoventes de humanismo e vestígios desoladores de um certo “salve-se quem puder”, tudo parece indicar que testemunhamos um momento histórico com poder para reformular o modo como vivemos. É, portanto, tempo de observar, antecipar e repensar a realidade d.C (depois de Corona), no sentido de garantir que saímos desta crise para um mundo melhor.
Há semanas irrepetíveis. Nos últimos dias, fez-se História duas vezes: um grupo de jovens descobriu a careca à bolsa de Wall Street e o ministro Eduardo Cabrita quis vacinar pessoas nascidas no Paleolítico. Um destes acontecimentos pode vir a mudar o mundo. Tentando desviar, por momentos, os olhos da terrível pandemia que assola o País, é tempo de espreitarmos o que se está a passar no maior mercado de ações do planeta.
Não precisa de ser guru em mercados financeiros para compreender a odisseia: um exército de pequenos investidores organizou-se na Internet e trava há dias uma batalha contra alguns dos mais poderosos fundos de investimento da bolsa nova-iorquina. Aborrecidos e, muitos deles, lançados no desemprego pela pandemia, estes investidores de sofá – que compram e vendem ações através de aplicações no telemóvel -, perceberam que, unidos, podem causar impacto no mercado de ações e beneficiar com isso. Mais: para além de lucrarem, podem ter o gozo de desafiar grandes empresas financeiras, movendo o seu próprio jogo contra elas. Mas como é que isto se processa?
Grosso modo, a Melvin Capital e a Citron Capital, empresas americanas de gestão de investimentos, apostaram na queda do valor das ações da Gamestop – uma cadeia de lojas de jogos de vídeo que estava em declínio. Prevendo que o negócio da venda de jogos em formato físico tomará o caminho dos videoclubes, desaparecendo, estas empresas apostaram na sua queda para lucrar com isso. A prática chama-se short-selling (venda a descoberto) e resume-se assim: antecipando que o valor das ações de um negócio vai cair, a Melvin Capital pede ações desse negócio emprestadas e vende-as – sob compromisso de as vir a comprar mais tarde. Por outras palavras, a Melvin Capital vende, a descoberto, um ativo a 10, comprometendo-se a comprá-lo quando ele valer 5, e lucra assim. Pode parecer estranho, mas é um instrumento financeiro recorrente.
Contudo, aqui, alguém virou o tabuleiro. Longe da esfera das gigantes da Bolsa, na rede social Reddit – onde o universo da compra de ações encontrou uma fusão improvável com a cultura dos memes e dos trolls -, uma hoste de investidores amadores organizou-se, pouco a pouco. Num fórum de novatos chamado WallStreetBets, a atenção ao fenómeno vinha a cultivar-se há meses e o plano foi traçado: instalar a aplicação e avançar para comprar ações em massa na Gamestop. Interiorizando uma das mais velhas máximas do capitalismo – se a procura aumenta, o preço sobe -, a fileira inorgânica de jovens comprou ações de uma empresa em queda e assistiu ao disparar do seu valor: dos $18 aos $450 por título. Bingo. Usufruindo de uma influência no mercado, normalmente exclusiva dos grandes fundos de investimento, os internautas começaram a vender ações muito acima do valor real. Na trincheira oposta, os fundos bilionários tremeram, forçados a comprar a preços estratosféricos as ações que venderam a descoberto. Resultado: jovens investidores que ficaram milionários da noite para o dia e milhares de milhões de euros perdidos pela Mervin Capital, que deixou escapar 53% do seu capital num só mês. Marx, onde quer que esteja, há de ter soltado umas boas gargalhadas.
Independentemente do desfecho final, esta história já fez História. Não sendo a primeira vez que algo do género sucede, nunca tinha acontecido nesta escala. Depois da Gamestop, outras empresas expostas à venda a descoberto, como a Nokia, a BlackBerry e a AMC, viram os valores a disparar, estimulados pela ação concertada deste novo grupo económico que são os bandos de jovens desempregados, muitos deles movidos pelo gozo e pelo tédio do confinamento. Na quinta-feira, um bando de investidores na Malásia reproduziu a façanha em Kuala Lumpur, com uma empresa de luvas de latex. É a revolução proletária da era digital.
Instalou-se o caos. Os investidores convencionais ficaram alarmados sentindo o mercado ameaçado. O CEO do mercado de ações NASDAQ falou em “manipulação” e sugeriu travar as movimentações para recuperar controlo. Na televisão, analistas criticaram a mobilização e levantaram a hipótese de as grandes empresas prejudicadas serem ajudadas pelo Estado, para colmatar as perdas. A aplicação Robinhood, palco de compra e venda de ações da Gamestop, estancou os movimentos, suscitando a revolta dos utilizadores. Entretanto, já as repôs, mas terá de responder em tribunal sob suspeita de ter imposto restrições num gesto de proteção dos grandes grupos financeiros. A discussão sobre o “mercado livre” está acesa nos EUA.
Não sabemos ao que isto leva. Socialmente, é já um fenómeno brilhante. Se tivermos em conta que as regras do sistema financeiro contemporâneo – do qual o cidadão comum se sente historicamente distante – não mudaram nos últimos anos, torna-se claro o papel decisivo da tecnologia na democratização do acesso ao mercado de ações. Aparentemente, um telemóvel, uma aplicação e um fórum online bastaram para que um grupo de amadores compreendesse o sistema e tomasse a Bastilha. Já há quem lhes chame activistas. Se é cedo para augurar o sayonara do mercado especulativo como o conhecemos, este ensaio de organização das bases é a prova de que, como disse Henry Ford, se o povo compreendesse o sistema financeiro, “existiria uma revolução ainda antes de amanhã de manhã”. Mais: a avaliar pelo ímpeto do poder para impossibilitar novas investidas, é a prova de que os sistemas que favorecem a elite financeira só se querem “livres” enquanto a favorecem.
Num mundo assombrado pela pobreza e pelas desigualdades, com uma crise económica à porta e novos ventos políticos a bater leve, levemente, é cada vez mais absurda a perpetuação de um sistema financeiro global profundamente ilógico, ineficaz e injusto. Por muito que haja quem se empenhe em culpar os mais pobres, os imigrantes ou os ciganos pelo seu real infortúnio, a realidade teima em mostrar-nos que o desvario financeiro acontece nas mais altas esferas, agora questionadas e sob escrutínio crescente. Há quem acredite na inevitável reconfiguração das regras do jogo capitalista, já como consequência da pandemia – não sabemos. De qualquer modo, não deixa de ser estimulante ver ensaios para novos equilíbrios a emergir.