Crónicas d.C.
Há um mundo antes, durante e depois do novo corona vírus. A comunidade organiza-se, a sociedade reinventa-se e a economia treme. Entre manifestações comoventes de humanismo e vestígios desoladores de um certo “salve-se quem puder”, tudo parece indicar que testemunhamos um momento histórico com poder para reformular o modo como vivemos. É, portanto, tempo de observar, antecipar e repensar a realidade d.C (depois de Corona), no sentido de garantir que saímos desta crise para um mundo melhor.
O Natal está à porta no planeta Covid. Na semana passada, escrevi sobre como devemos acudir à asfixia do pequeno comércio, comprando presentes nos negócios locais. Em 2020, o Natal não será uma mesa infindável de gente querida, mas almeja-se uma quadra de humanismo, calor e solidariedade. Neste ano terrível, tão prioritário como a salvação de doentes é não deixar afogar quem trabalha e se dispõe ao sacrifício pelo bem-comum. Se a crise é geral, se o desemprego lavra e as nossas cidades se afundam sem cultura, sem turismo, sem restauração e sem comércio local, é estranho pagarmos 11 milhões do erário público à Web Summit por uma conferência online de três dias. Mas pagámos.
A Web Summit chegou a Portugal em 2016, trazendo para Lisboa a maior conferência de tecnologia da Europa. Duas edições mais tarde, o governo português anunciava a assinatura de um contrato de 10 anos (2018-2028) com a empresa de Paddy Cosgrave para a realização deste evento anual em Lisboa. O contrato, com o valor de 110 milhões de euros, ou 11 milhões por ano – dos quais oito são pagos pelo governo e três pela Câmara Municipal de Lisboa -, prevê a realização desta conferência mundial que junta empreendedores, investidores e curiosos em ciclos de palestras com figuras de destaque das mais variadas áreas. O que justifica este investimento em Portugal?
Para além da projeção exterior do País, a Web Summit propõe-se promover negócios e ideias nacionais na área da tecnologia, pondo profissionais em contacto com investidores, e afirmando Lisboa enquanto centro de criatividade digital e empreendedorismo tecnológico. Há bons motivos para sermos céticos desta estratégia, mas afastemos isso agora. Este é um ponto argumentativo. A outra dimensão racional do investimento público é a atração à capital de milhares de pessoas de outros países e o estímulo do consumo interno durante os dias do evento, cujo impacto económico direto é evidente. Em 2019, os participantes da conferência gastaram 64,4 milhões de euros em quatro dias, de acordo com um estudo da Associação de Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal (AHRESP). Mais uma vez, há razões para não se concordar com a estratégia do turismo em Lisboa, mas o objetivo é claro. Então qual é a questão?
Em 2020, os festivais, comemorações e eventos foram, na generalidade, impossibilitados pelas restrições sanitárias. Os profissionais da cultura e das artes atravessam, hoje, uma das mais profundas crises de que há memória. Mais do que os empresários mediáticos da restauração de luxo, a cultura – essa sim – está a pão e água. As medidas da Direção-Geral de Saúde impuseram limites rígidos aos eventos e a maioria das organizações optou por não os realizar. O cancelamento em massa foi de tal ordem que a opinião pública se convenceu de que estavam proibidos. Com toda a indústria congelada, mais os órfãos do turismo, da restauração e do comércio local, temos centenas de milhares de vidas em cheque – muitas sem apoios ou com apoios insuficientes. É uma catástrofe. Neste panorama, criar oportunidades para negócios pequenos e atrair turistas à cidade, como a Web Summit se propunha fazer, seria bom. O problema? Se, por não se poder realizar em segurança, o evento acontece online, ninguém vem a Lisboa, nem há ganhos concretos para a economia. Por outras palavras, a Web Summit não cumpre o seu propósito. Mas o Estado paga na mesma. Porquê?
De acordo com o divulgado, o contrato entre Portugal e a Web Summit prevê uma cláusula de não-pagamento perante motivos de “força maior”. Aqui, o que parece não estar claro é o que as partes entendem por isso. Se é óbvio que o Estado português considera a sua árdua e inglória guerra contra o vírus uma situação de “força maior”, não se compreende porque não invocou a cláusula para ajustar o valor, num ano em que a Web Summit não acontece em Portugal. Seria de esperar que o fizesse, marcando uma posição. Ao mesmo tempo, é impensável que a organização – e Paddy Cosgrave, em última análise – ache normal arrecadar 11 milhões de euros dos cofres públicos portugueses, além das receitas dos bilhetes, no pico de uma colossal crise pandémica, por uma conferência online de três dias. De alguém que é herói de tanta gente, líder espiritual de uma tribo internacional de empreendedores, seria de esperar outro grau de responsabilidade e ética. Não é preciso ser-se formado em economia e negócios para perceber que, neste momento crucial, com Portugal à fome e em dificuldades, cobrar 11 milhões de euros ao erário público faz diferença. A covid deu uma oportunidade ao universo do empreendedorismo 2.0 para provar de que é feito. O resultado não é animador.
Para além das pessoas que pagaram para participar, cada português deu 1,10€ do seu bolso para uma conferência online que em nada o beneficiou, no pico de uma crise sem precedentes. Pagar um café, ou um pastel de nata, a cada cidadão teria sido mais útil.