Crónicas d.C.
Há um mundo antes, durante e depois do novo corona vírus. A comunidade organiza-se, a sociedade reinventa-se e a economia treme. Entre manifestações comoventes de humanismo e vestígios desoladores de um certo “salve-se quem puder”, tudo parece indicar que testemunhamos um momento histórico com poder para reformular o modo como vivemos. É, portanto, tempo de observar, antecipar e repensar a realidade d.C (depois de Corona), no sentido de garantir que saímos desta crise para um mundo melhor.
O cosmos não tem poupado as apps. Se, por um lado, começam a ser óbvias as funestas armadilhas das redes sociais, o governo português parece ter elevado a StayAway Covid ao pódio da infâmia virtual. Num ápice. De Mark Zuckerberg a António Costa, 2020 é uma prova de fogo para os empreendedores digitais. Aqui, uma palavra bastou para que a ferramenta desenhada para nos proteger de um vírus se transformasse, ela própria, num vírus aos olhos do público: obrigatório.
Ditatura, autoritarismo, manipulação, terrorismo: esta semana, ouviu-se de tudo. O governo propôs a obrigatoriedade da aplicação de rastreio à covid-19 em contextos específicos e o país reagiu – com razão. A proposta é inaceitável. O chorrilho de críticas veio de todos os quadrantes políticos, em defesa de um modelo de sociedade livre, incompatível com downloads obrigatórios e fiscalizações, e isso é animador numa democracia. A liberdade e a privacidade são pilares fundamentais. Simultaneamente, há exageros e hipocrisia. Entre quem fala para salvar a liberdade de um possível atropelo, há quem se erga em bicos dos pés, extasiando a cada falha do governo, e isso cansa. Até na indignação há uma dignidade a manter. A proposta é um pé na argola e um sinal de esgotamento, não um devaneio opressor. Interessa-me, portanto, mais analisar a polémica do que massacrar o assunto.
Perdoem-me, mas há, para já, um lado cómico na tragédia grega da aplicação. Começou logo pelo nome: em Itália, por exemplo, a aplicação de rastreio ao vírus chama-se Immuni (“imunes”, em italiano). Na Holanda, chama-se CoronaMelder (“detector corona” em holandês), na Finlândia, chama-se Koronavilkku (“clarão corona”, em finlandês) e no Cazaquistão chama-se BizMirgemiz (“estamos juntos”, em cazaque). Em Portugal, chama-se StayAway Covid, honrando o reflexo provinciano, tão luso como a água, de dar nomes em inglês a projetos nacionais, numa aventura linguística para conferir seriedade à coisa. Não faltaram sugestões engraçadas, como, por exemplo, “Xô, Covid” – o que teria ajudado à popularidade do apetrecho, mas decidimos, mais uma vez, ser very typical. Começa mal. Se é ousado imaginar cada português a ter um smartphone, instalar apps, ligar o bluetooth, inserir códigos e receber notificações sem inundar a linha da Saúde 24 com dúvidas de informática, imagine-se o cenário de termos cada ilustre cidadão, de Olhão a Trás-os-Montes, a pronunciar StayAway Covid à sua maneira.
Segue-se outra verdade constrangedora: a aplicação não está a funcionar bem em lado nenhum. Não existe um único país democrático com app obrigatória – e isso já devia deixar pistas elementares, meu caro Watson -, para além de que o número limitado de utilizadores, associado à complexidade do sistema, está a fazer com que a aposta seja, modo geral, um flop. Em França, foi o próprio primeiro-ministro a admitir não ter instalado a aplicação. Emmanuel Macron descartou cedo a eficácia da coisa, seguindo para lanchar um croissant. Em Itália, 8 milhões de pessoas instalaram, mas apenas 477 inseriram o código quando infectados, segundo o La Repubblica. Noves fora, em 8300 alertas, descobriram-se 13 casos de Covid-19 graças ao utensílio. Treze. 8 milhões de downloads, milhares de alertas e telefonemas a entupir as linhas de saúde. Treze casos. O número do azar. No Reino Unido, a Euronews dá conhecimento de utilizadores a receber alertas injustificados, ou seja, a app a assustar pessoas por falha técnica. Terra chama Marte. Não está a funcionar.
Em Portugal, o cenário não é diferente. 1,3 milhões de pessoas descarregaram a aplicação, das quais apenas 113 introduziram o código. Porque a numerologia não perdoa, lá estão, de novo, os dígitos do azar, tão pouco subtis. Após a última reunião do Conselho de Estado, António Lobo Xavier testou positivo à Covid-19 e Rui Rio correu ao Twitter para acusar a aplicação de não o ter avisado antes. Estava lançada a piada. O mal-entendido expôs a total incompreensão dos portugueses em relação a como a app funciona. Não tendo capacidade para farejar o vírus a partir do nosso bolso– como, aliás, apenas Rex, o Cão Polícia, ou o Inspector Max, fariam nessa situação –, a aplicação tem exigências. Só funciona estando ativa nos dois telemóveis, se os utilizadores permanecerem quinze minutos a menos de dois metros um do outro, se o doente tiver recebido um código do médico com o diagnóstico positivo e, claro, se tiver inserido esse código no telemóvel. A conta oficial da StayAway Covid respondeu ao tweet do líder do Partido Social Democrata, escancarando a inevitabilidade: liberdades individuais à parte, esta app é dificilmente útil. A proposta para torná-la obrigatória é um grito de desespero perante um aparelhómetro que teima em não funcionar. Todos já passámos por isso.
O lado sério. Há um lado seríssimo nesta questão. Compreende-se que, perante um desafio político desta magnitude, qualquer governo trema e acuse cansaço, contudo é essencial que os naturais avanços e recuos não sejam guinadas. A marcha fúnebre toca sempre que se fala em economia, as emoções estão ao rubro há demasiado tempo e a liderança tem de ser clara, concisa e constante. As reviravoltas desgastam a credibilidade das instituições, transmitindo ao país arbitrariedade e descontrolo, em especial se alimentarem polémicas justificadas e teorias conspiratórias. Estamos todos cansados. É, portanto, importante pousar, calmamente, a proposta no chão e lançar mãos ao trabalho.
No fundo, precisamos de bom senso. O aumento de casos é preocupante, a gestão complicada, mas já se sabia que seria assim. É tempo de menos medidas bruscas e menos reações desmedidas. Há um mundo depois de Corona e vamos todos precisar de lá chegar com a sanidade e a democracia intactas.