Crónicas d.C.
Há um mundo antes, durante e depois do novo corona vírus. A comunidade organiza-se, a sociedade reinventa-se e a economia treme. Entre manifestações comoventes de humanismo e vestígios desoladores de um certo “salve-se quem puder”, tudo parece indicar que testemunhamos um momento histórico com poder para reformular o modo como vivemos. É, portanto, tempo de observar, antecipar e repensar a realidade d.C (depois de Corona), no sentido de garantir que saímos desta crise para um mundo melhor.
Como numa ópera italiana estendida ao longo de sete meses, as emoções estão ao rubro há demasiado tempo. É too much drama. Nos bastidores dos discursos motivadores, das piadas piedosas, das saudações teatrais, dos sorrisos forçados à centésima vez que alguém diz “isto agora faz tudo vénias, como no Japão”, estamos todos a lutar pela nossa sanidade mental. Em 2020, a única forma de celebrar o Dia Mundial da Saúde Mental sem escárnio é exigir mais atenção para as doenças do interior.
“Promover a literacia em saúde mental e combater o estigma associado às doenças mentais” é o objetivo de um curso online gratuito, lançado na sexta-feira pela iniciativa ManifestaMente, com o patrocínio do Programa Nacional para a Saúde Mental. Cofinanciado pela Direção-Geral da Saúde, o “Kit básico de saúde mental” pretende sensibilizar os portugueses para a importância desta esfera primordial da saúde pública. Nesse breve curso, há dicas para a preservar, identificar sinais, detectar sintomas ou prestar auxílio aos outros – noções absolutamente urgentes num País que dá prioridade à doença física. Se a maleita não jorrar sangue, ninguém lhe dá atenção. Em Portugal, onde a depressão e a ansiedade flagram, e o suicídio é a segunda maior causa de morte dos jovens, a resposta popular para os flagelos mentais continua a ser, tantas vezes, “não sejas tão negativa”, “vai ver o mar, que isso passa” ou, simplesmente, “anima-te, filho”.
Façamos o exercício de imaginar um mundo diferente. Há duas semanas, escrevi sobre como as doenças cardiovasculares matam, em Portugal, 100 pessoas por dia face a 3 óbitos diários por Covid-19. Esta comparação não serve, como é evidente, para desvalorizar a mortalidade de um vírus horrendo, mas para o relativizar face às outras doenças, num panorama em que a mobilização obstinada da atenção global para a corrente pandemia motiva uma negligência grosseira face a ameaças ainda maiores. Num cenário em que está na moda falar em crises e situações “sem precedentes”, é de notar que também não há precedentes na campanha de informação montada em torno do coronavírus. Os esforços públicos e mediáticos são inéditos.
O nobre País do galo de Barcelos é, hoje, habitado por pessoas cujo conhecimento em torno da Covid-19 e a sua prevenção é astronómico quando comparado com o conhecimento geral em relação a qualquer outra matéria de saúde ou sociedade. A saúde mental não é exceção. Em parcos meses, temos um povo inteiramente (ou quase) informado sobre o perigo do coronavírus e capacitado para prevenir o contágio, se bem entender. Partindo deste ponto, qual seria a realidade se, a par dos boletins covidiários, acompanhássemos dados ao minuto sobre depressão, ansiedade, suicídio, demência ou alcoolismo em Portugal? Como seria o mundo se nos bombardeassem com informação quotidiana sobre como prevenir, identificar e combater sintomas em nós e nos outros?
Diferente, decerto. Em vez disso, temos um Dia da Saúde Mental, quando seria preciso bem mais. De acordo com a Sociedade Portuguesa de Psiquiatria, mais de um quinto dos portugueses (22,9%) sofre de perturbações, tornando Portugal o segundo país da União Europeia com maior prevalência de doenças mentais. Neste contexto é, no mínimo, estranho que a saúde mental não ganhe destaque no debate público. A visibilidade do tema limita-se a quando alguém famoso chama a atenção por descompensação emocional, ou um crime sobressai por requinte psicopático. E depois evapora-se.
O estigma social em relação à doença mental é outra peste. Em 2020, ninguém questiona a ida ao hospital por uma perna partida, contudo há quem condene o recurso à psicologia para tratar um problema mais sério e profundo. Isto num País onde, a cada 100 adultos, 4 apresentam uma perturbação mental grave e 12 sofrem de uma com gravidade moderada. Se o panorama pré-Covid já era obscuro, o pânico da pandemia, a obsessão, o isolamento dos mais frágeis, a asfixia social, o encarceramento das crianças e o colapso económico vieram atear as nossas florestas interiores. Como se pôde constatar nos medonhos incêndios dos últimos anos, o abandono e o desprezo do interior do país é condenar o interior às cinzas. O mesmo se passa com o interior das pessoas.
Do sistema económico à justiça, da democracia ao clima, exige-se que a saúde das sociedades seja compreendida por todos. Se, em pouco tempo, a política foi capaz de educar o globo sobre um vírus tão complexo, seria essencial aproveitar a onda para alargar consciência no campo vital da saúde mental.
Há um elefante no meio da sala e está à beira de um ataque de pânico.