Crónicas d.C.
Há um mundo antes, durante e depois do novo corona vírus. A comunidade organiza-se, a sociedade reinventa-se e a economia treme. Entre manifestações comoventes de humanismo e vestígios desoladores de um certo “salve-se quem puder”, tudo parece indicar que testemunhamos um momento histórico com poder para reformular o modo como vivemos. É, portanto, tempo de observar, antecipar e repensar a realidade d.C (depois de Corona), no sentido de garantir que saímos desta crise para um mundo melhor.
As crianças não estão bem. Ao fim de meses isolados em fortalezas de pânico, os nossos meninos de oiro, de oiro fino, estão impedidos de ser tudo ou quase tudo o que deveriam ser: livres, despreocupados e aventureiros como libelinhas. Em estado de alarme, os pais correram a pôr as crias a salvo, mas o rompante implicou meter-lhes medo e afastá-las do mundo. Enquanto, por um lado, não há pulsão mais natural que a de protegermos os bebés, por outro, a falta de informação e a fraca sensibilidade pedagógica fez com que muitos progenitores afundassem os miúdos em fobias obscuras. O bicho-papão tem em 2020 a forma de um vírus real, tão real que aterroriza pais, divide famílias e mata pessoas, rasgando o pano da habitual fantasia. O problema? Ninguém imagina o que é enfrentar a sombra deste monstro com sete anos. Há crianças com traumas que persistirão, tal foi a violência do novo-anormal que lhes impuseram pensando protegê-las. Não é caso de polícia, é caso de psicóloga. Se não podemos voltar atrás, é obrigatório escutá-los agora, dar-lhes segurança, como é obrigatório dar-lhes liberdade e ter a coragem de os devolver ao universo.
Não deveria ser preciso um pediatra para antecipar o sofrimento dos miúdos fechados à força. “Fica em casa” é, ainda hoje, uma ideia pouco atraente para mim que quase lá não paro, mas quando era criança, seria uma sentença do piorio. É castigo, daqueles que doem mais fundo na idade em que o tempo não existe e uma tarde vale por um Verão. Castigar um miúdo ao longo de meses, longe dos amigos, da escola e do ar livre é péssimo. Impedir os miúdos de ver os avós (e os avós de ver os miúdos) começa a ser grave. Por muito que a quarentena tenha sido incontornável a princípio, no centro do furacão que espalhava o caos além-fronteiras, a campanha massificada em torno do “stay the fuck home”, diabolizando quem saía à rua, gerou um ambiente onde ser sedentário se tornou virtude e há muitos pais a dar para esse peditório. Só os anjos ficam em casa. Andar à mercê da virose é coisa de irresponsável.
Nas famílias, os relatos divergem. Nas primeiras semanas confinadas, há histórias de pais e filhos que se aproximaram, tendo finalmente tempo para se conhecerem, conversarem, criando elos mais fortes. Entretanto, evaporou-se a euforia inicial da quarentena Disney e impuseram-se os conflitos típicos das proles enclausuradas. Há fábulas de terríveis diabretes a tornar impossível a vida dos pais em teletrabalho, implicando com os irmãos, criando problemas em casa, dilatando neuroses. Não será natural, essa descarga de frustração? Pelo caminho, houve quem tenha aprendido a valorizar o heroísmo das educadoras de infância, experimentando o enorme desafio que é lidar tanto tempo com duendes irrequietos. Creches e escolas reabriram em Junho, proibindo no entanto escorregas e baloiços, a troca de brinquedos e o contacto entre colegas. Honestamente, arrepio-me só de pensar no que é preciso dizer a um miúdo para que ele tenha medo de tocar no chão, nas coisas por descobrir, ou nos seus amigalhaços do recreio. Não concebo o que será ter pais e educadoras a alimentar os meus pesadelos, lunáticos com a ideia de que me estão a defender. Não imagino o trauma de uma criança a quem explicam, em linguagem de desenhos animados, que anda aí um bicho que vai matar a avó se não a protegermos. Nem faço ideia do que é interiorizar, com essa idade, o peso da culpa e o pânico de poder ser portador desse bicho. É um filme de terror demasiado realista.
Claro que cada caso é um caso. Como há quem consiga manter a racionalidade e o equilíbrio perante a ameaça, há quem poupe os filhos ao stress, dentro do possível. Há quem desde o início tenha acautelado o grau de ansiedade transmitido aos mais novos, conseguindo o impossível, mas não é toda a gente, infelizmente. Continua a existir, por exemplo, quem se recuse a levar os filhos à escola, tal é o medo. Não sabemos como será em setembro, no regresso às aulas, mas a situação é preocupante. O contacto e a socialização fora da família são fundamentais ao crescimento saudável. O coronavírus parece, à primeira vista, poupar as crianças por atacar os mais velhos, mas não. O seu efeito é particularmente nefasto na cabeça dos mais novos, aí com especial requinte.
Nos bebés, então, chegam-nos contos de levar às lágrimas. Não bastava a economia em ruínas, com o seu peso insustentável pairando sobre os ombros dos pais que acabam de o ser: uns já desempregados, outros à beira disso, tementes ao futuro, antecipando as carências, as fraldas, as papas, as creches, os livros, a habitação condigna. Pais como os pais da Luisinha, que faz em Julho quatro meses. Luisinha, chamemos-lhe assim, nasceu do ventre da mãe num edifício em pânico, entre ambulâncias e encomendas de ventiladores. O pai, impedido de entrar no hospital, onde a natureza ditaria que recebesse nos braços a sua bebé, ao lado da valente mãe, viu pela primeira vez a filha através do Whatsapp, em casa, diante de uma garrafa de tinto para engolir os nervos. Já em casa, passados dias, onde se esperaria que a bebé Luisinha conhecesse a família eufórica, os expectantes avós, num alvoroço de enxovais, as tias rindo nervosamente – tudo isto lhe foi roubado. Hoje, com dezasseis semanas, a Luisinha ainda não pôde levar um beijinho do avô. Perdoem-me o palavreado, mas que porra de coisa anti-natura. Bravos são os que tentam contornar a peste o melhor possível, há famílias brilhantes empenhadas em soluções, mas é de começar a pedir, a quem quer ser mais papista que o Papa, desinfectando além da troika, que não faça isto às Luisinhas. O impacto deste clima obsessivo no seu crescimento, na sua felicidade e saúde é brutal. Poupem, por favor, os meninos às histerias sanitárias. O nosso trabalho enquanto adultos é reduzir ao máximo o peso desta hedionda circunstância na sua ainda pura existência.
É difícil. Por muito boa que seja a intenção das mães-coruja, dos pais-galinha, temos de permitir que as crianças sejam crianças. A pandemia forçou a clausura dos nossos passarinhos e não podemos deixar que assim seja. Não sou pai – e podem acusar-me à vontade de não compreender o ímpeto de encontrar segurança na vida em cativeiro -, mas, como diz a minha avó, é bom lembrar que “os nossos filhos são nossos filhos, mas são outras pessoas”. Essas pessoas, por muito minúsculas que sejam, têm direito à infância, à família e ao ar livre como nós tivemos.