Crónicas d.C.
Há um mundo antes, durante e depois do novo corona vírus. A comunidade organiza-se, a sociedade reinventa-se e a economia treme. Entre manifestações comoventes de humanismo e vestígios desoladores de um certo “salve-se quem puder”, tudo parece indicar que testemunhamos um momento histórico com poder para reformular o modo como vivemos. É, portanto, tempo de observar, antecipar e repensar a realidade d.C (depois de Corona), no sentido de garantir que saímos desta crise para um mundo melhor.
Esta semana completámos quatro meses de “situação” em Portugal. No centro de uma depressão profunda, “toda esta situação” é a expressão a que recorremos para resumir um colosso grande demais para as palavras. No mundo a braços com a odiosa pandemia, cada governo tenta praticar aquilo que crê ser o menos péssimo dentro do contexto e critérios de cada país. As ilusões dissiparam-se. Ao fim de quatro meses, há quem tenha pensado mais, outros menos, porém deixou de haver quem, munido de um cérebro, acredite em soluções felizes. Não há soluções felizes. Há, isso sim, soluções melhores que outras. Neste cenário onde trabalhamos todos para o “do mal, o menos”, é tempo de comparar hipóteses com cautela, mas começa a ficar evidente que nenhuma passa por promover uma obsessão tóxica em torno do vírus. A monomania do coronavírus é um flagelo para a saúde mental pública e as pessoas estão, como se diz em Psicologia, a passar-se. Se os países mais desenvolvidos da Europa já deixaram de afogar os noticiários em Covid, está na altura de Portugal ser responsável. Aqui, a responsabilidade passa por abolir esta espécie de liga do vírus, esta febre do acompanhamento numérico dos infectados ao minuto em que se transformaram os jornais.
Espreitem um telejornal belga, alemão ou francês – podia ser uma recomendação da Direcção Geral de Saúde Mental, se essa Direcção existisse. Ao que parece, Portugal começa a estar desacompanhado no modo como gere o medo e o pânico das pessoas neste campo. Neste nosso jardim à beira-mar plantado, estamos há quatro meses a abrir noticiários com os números da peste. Quatro meses de conferências de imprensa diárias, a televisão acesa e as Nossas Senhoras de aço, a quem não consigo deixar de admirar o heroísmo, a atirarem-nos com números e dúvidas para cima. Na Bélgica, por exemplo, onde se discute a resposta europeia à crise, as notícias sobre a Covid-19 limitam-se à alteração de uma lei, por exemplo, a um episódio singular que envolva a doença, ao resultado de um Conselho de Ministros sobre o assunto ou à implementação de medidas especiais numa região particular. Por outras palavras, o vírus é tratado como um problema a par com outros – e falamos da Bélgica, que tem seis vezes mais mortos do que nós e uma população semelhante. Por cá, mantemo-nos vidrados nos números diários, mesmo quando estão sob controlo. E para quê, exactamente? Saímos da cama, tomamos o pequeno-almoço e acompanhamos a saga, como quem vê em que lugar está o Rio Ave. Ora bem. Xis casos positivos em Lisboa. Sete testes positivos em Vila Nova do Freixo. Uma funcionária da Junta de Freguesia de Algures mordeu a maçã sem a desinfectar, apanhando o maldito. E seguimos o nosso dia, até ao boletim do almoço.
A situação é grave demais para a tratarmos assim. Se a pandemia reafirmou a centralidade da informação de qualidade nas sociedades, também expôs a força do quarto poder na nossa vida. Ora, com grande poder vem grande responsabilidade, como sabemos. Num período em que a dúvida e a incerteza nos tiram o sono, arrepiados pela vertigem de um problema no escuro, precisamos dos media mais atentos e rigorosos do que nunca. Se a comunicação é fundamental na salvação de vidas, não podemos deixar que se torne num foco de contágio de distúrbios mentais, pela criação de um estado permanente de insegurança. Em Março, começou por ser obrigatório alertar toda a gente para o perigo. Já hoje, devíamos, de uma vez por todas, ter cuidado com estas doses cavalares de pavor. São quatro meses de medo diário, administrado às colheres. Mas o que é isto? As pessoas estão deprimidas e ansiosas. Estão perturbadas e à beira do colapso. Acatar recomendações de saúde é prioritário, as mãos, as máscaras, os contactos físicos, já sabemos, mas agora urge acabar com esta espiral de loucura. O medo descontrolado vende títulos, mas tem de acabar agora. Que há órgãos dependentes do sensacionalismo para facturar, já se sabia. Deitar por terra a sanidade de todo um país a este nível é de uma gravidade inédita.
Precisamos de luzes e de um mínimo de paz. A informação clara e a existência de vozes equilibradas que orientam a população são fulcrais. Não se trata aqui de tentar esconder números, nem de camuflar a realidade. Pelo contrário, trata-se de valorizar o conhecimento e de o partilhar com isenção para a boa saúde da democracia. Mergulhar o país em álcool-gel, paralisado diante de um plasma, aproveitando para gerar lucro com a aflição natural da população, é o contrário do que se exige neste momento. O problema é demasiado grande, a dimensão social, a crise económica, os traumas diversos, e a obsessão com a tabuleta dos casos positivos é nefasta, para além de parva. Bloqueia-nos. A comunicação transparente dos políticos, as conferências de imprensa, as conclusões da comunidade científica e todas as notícias em relação ao novo coronavírus devem ser amplamente divulgadas. Quando forem notícias, claro. Nada disso tem a ver com a Liga Covid, quantos infectados e mortos há, que região está à frente, quem está a perder. A Liga Covid é doentia.
A saúde da nossa sociedade está em risco de derrocada, mas não é graças ao vírus que abre os telejornais. É, entre vários outros factores, também graças à gigantesca neurose que se criou em torno dele. Se o nosso horizonte é uma nobre luta pela saúde de todos, está na altura de ter a coragem para deixarmos de alimentar essa doença.