Da calamidade global gerada pelo já-não-tão novo corona vírus, resultou um movimento artístico inédito: uma onda de solidariedade que levou músicos de todo o mundo a oferecer concertos gratuitos na Internet. Mais do que observar o fenómeno à luz da tecnologia – tão maravilhosa quanto problemática -, importa garantir que não voltamos a subestimar a essencialidade das artes e da cultura na saúde mental pública. É essencial frisar o quanto a classe artística se mostra, mesmo em tempo de crise, comprometida com o serviço público e retribuir a comovente generosidade desta que é uma das classes mais afetadas pela pandemia.
Do Festival Eu Fico em Casa aos museus que escancararam portas online, dos concertos privados no Instagram às plataformas de cinema à borla, da dança e do (Teatro) D. Maria II em casa aos livros grátis, várias foram as iniciativas culturais dedicadas a fazer entrar as brisas da beleza nas casas de um mundo em quarentena. Se Maomé não pode ir ao concerto, vai o concerto a casa de Maomé. Frutos da efervescência criativa dos profissionais da cultura, estes momentos têm sido fulcrais catalisadores de esperança, inspiração, união e bem-estar em dias difíceis, representando, não apenas simbolicamente, a afirmação da importância da arte, e dos artistas, na vida de todos. O problema, porém, revela-se no silêncio pós-concerto, quando a cortina (ou o telemóvel mal equilibrado numa estante) cai. A asfixia de um mundo tão poderoso no palco, todavia tão frágil nos bastidores da vida real dos artistas, é menos visível e não passa em streaming. O que devemos retirar daqui para o futuro?
A calamidade atingiu o setor artístico com uma força e imediatez sem paralelo: fecham-se teatros, cancelam-se festivais, encerram-se museus, proíbem-se eventos, encontros, suspende-se tudo por tempo indeterminado. Da noite para o dia, o universo parece perder aquilo que lhe dá cor, obscurecendo. O problema? Para além deste assolo, o impacto na vida dos artistas, produtores, criadores, técnicos, programadores – classe onde a maioria dos profissionais vive sem contrato – é devastador. Um inquérito do Sindicato dos Trabalhadores de Espectáculos, do Audiovisual e dos Músicos (CENA-STE) revelou que, em 700 respostas, 90% dos que viram os seus espetáculos cancelados vive sem vínculo laboral estável. Na Austrália, Alemanha, Reino Unido, criaram-se de imediato pacotes de emergência de apoio às artes perante esta perda global avassaladora, na ordem dos biliões de euros, da qual será difícil recuperar. Na vida particular dos artistas, infelizmente habituados a uma incerteza profissional constante (sem apoios ou segurança), recebendo à bilheteira, ao trabalho e “à jorna”, o cancelamento dos trabalhos não é só uma derrocada na sua carreira, mas uma queda emocional profunda, o arraso de meses (anos!) de trabalho e um agravamento particular da sua situação financeira, por não poderem ir para casa fazer teletrabalho. Não há eventos, não há pão. Como é suposto que paguem a renda este mês?
Em Portugal, a crise expõe a vulnerabilidade de um universo brutalmente desprotegido. Graça Fonseca, ministra da Cultura, anunciou o esforço suplementar do Estado para concretizar medidas de apoio ao setor. Passadas duas semanas, as medidas revelam-se, ora bem-vindas, ora polémicas, mas todas demasiado curtas como era amargamente previsível. A precariedade no domínio português das artes é crónica e acumulam-se décadas de investimento parco. Internacionalmente, os apelos de ação rápida para resgatar a Cultura da paralisação planetária vêm de redes e fundações como a PEARLE, European Cultural Foundation, Culture Action Europe e as respostas mostram-se insuficientes, mesmo a da Comissão Europeia. No nosso país, a situação é particularmente grave e a crispação ferve como é natural em tempo de guerra, desvendando o “cada um por si” típico de um caos competitivo. O TV Fest, cancelado em 24h graças à polémica, gerou a revolta nobre e unânime dos artistas sobre questões fundamentais ao pensamento cultural, mas também motivou ataques baixos e sentenças antidemocráticas de linchamento público. Talvez seja um sintoma do desespero, a agressividade. Avistam-se tempos duros e vamos precisar, mais do que nunca, de afinar instrumentos se queremos orquestras. Tal como sem música, sem cor, ritmo ou movimento não temos força, nem ânimo, estaremos todos condenados sem o compromisso público generalizado, a solidariedade dos pares e um regime sólido que defenda as artes. É vital que se criem, já, medidas eficazes de apoio ao setor e é vital, também já, rever estatutos do trabalhador artístico e desenvolver enquadramentos permanentes para os profissionais independentes, que são a gigantesca maioria.
A criação, a harmonia e a estética são o que eleva a nossa existência. É fundamental aclamar o heroísmo de quem, saindo particularmente afundado da crise, faz hoje, mais uma vez, das tripas coração para levar esperança e emoção ao sofá de todos, salvando a nossa vida a troco de nada. Como quase sempre.
Levemos para o futuro – nós, cidadãos, Estado, empresas, instituições e organismos internacionais, mas também nós, profissionais da área – a certeza de que jamais viveremos numa sociedade evoluída e saudável sem um horizonte diferente.