Vivemos numa época paradoxal. A liberdade de pensamento continua juridicamente inviolável, tal como consagrada na Declaração Universal dos Direitos Humanos, mas a forma como hoje a exercemos pouco se assemelha ao que se imaginava quando esse direito nasceu. Não porque tenha sido formalmente limitada, mas porque o ambiente informacional mudou por completo. A pluralidade de contextos mediáticos contemporâneos, desde plataformas digitais a espaços de entretenimento, cria camadas de comunicação antes inexistentes, cada uma com regras próprias e ritmos distintos. Pensamos dentro de um fluxo incessante, ruidoso e acelerado — um fluxo que interfere na própria origem do pensamento.
A chamada “liberdade de pensamento” surge hoje moldada pela velocidade da informação e pela pressão para reagir antes de refletir. Não nos impedem de pensar; empurram-nos a pensar depressa. As narrativas chegam antes das perguntas, as conclusões antes dos factos. E o pensamento, privado do tempo de que necessita, torna-se reação automática. A isto junta-se a liberdade de expressão que, em teoria, garante pluralidade e debate público, mas que na prática é cada vez mais instrumentalizada: eufemismos, manipulações emocionais, enquadramentos estratégicos, desinformação. Quando assim é, a primeira vítima não é o discurso, é quem pensa.
Deparamo-nos, portanto, com um paradoxo jurídico e ético: o Direito pode pouco. Qualquer tentativa de limitar a expressão, mesmo aquela exercida de “má-fé” , arrisca-se a converter-se num ataque à própria liberdade. Para proteger o pensamento seria preciso restringir a forma de expressão; mas fazê-lo seria ameaçar o pensamento que se pretende preservar.
Enquanto permanecemos neste impasse, instala-se algo mais profundo: um desgaste moral coletivo. Um burnout silencioso que nasce não só do excesso de tragédias, mas da consciência da nossa pequenez perante um mundo que nos ultrapassa. Queremos agir, fazer a nossa voz existir, mas cada gesto parece insuficiente; cada palavra, um eco. E o cansaço de querer agir converte-se demasiadas vezes em paralisia.
Habituámo-nos também a palavras que nos traem. Eufemismos que funcionam como anestesias éticas. São véus que protegem e simultaneamente cegam. O que não é nomeado não pode ser resistido. Aceitamos as palavras suaves e perdemos a capacidade de interrogar, de confrontar, de pensar por conta própria.
Talvez por isso ascendem, depressa demais , figuras que parecem legítimas mas que se revelam oportunistas, radicais ou sedutoramente autoritárias. São produtos de um modelo que recompensa quem domina a linguagem, quem explora medos, quem torce a realidade até que pareça plausível. Crescem porque confundimos voz com barulho, opinião com verdade, ouvir com escutar; porque a nossa liberdade de pensamento está debilitada — não pela lei, mas pela narrativa.
Contudo, é precisamente neste ponto que nasce a possibilidade de resistência. Quem desafia, quem ainda acredita num mundo melhor, carrega um peso, mas também uma claridade: a de saber que nenhum gesto é inútil se romper a anestesia.
Se o Direito não pode limitar a expressão sem a violar, resta-nos fortalecer o pensamento. A única resposta democrática é investir numa literacia mediática séria e exigente: interpretar, verificar, desconfiar. Não é censura, é autonomia.
Num tempo em que a informação chega sempre antes do pensamento, talvez a verdadeira liberdade já não seja apenas falar. Talvez a liberdade do século XXI seja algo mais difícil e muito mais corajoso: saber filtrar.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.