A reação firme da União Europeia ao alegado plano de paz apresentado por Donald Trump passou a ocupar lugar de destaque no debate internacional. Kaja Kallas, alta representante da UE para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança, sintetizou em Bruxelas aquilo que já se tornou a posição oficial europeia: a pressão deve recair sobre o agressor, a Rússia, e não sobre a Ucrânia, cuja soberania foi violada em 2022 e continua sob ataque quotidiano.
Com uma clareza pouco comum em momentos de divergência transatlântica, a Europa assumiu uma oposição inequívoca a qualquer proposta que obrigue Kiev a ceder território, autonomia ou capacidade militar como condição para um cessar-fogo imposto de fora.
A declaração de Kallas — “A pressão tem de estar no agressor, não na vítima; fazê-lo só vai convidar a mais agressões” — não é apenas um juízo moral. É, sobretudo, um diagnóstico estratégico ancorado num princípio basilar do direito internacional: um Estado agredido não deve ser penalizado pela violência que sofreu.
A crítica europeia reflete o alarme provocado pelo suposto plano de 28 pontos noticiado pela imprensa internacional, segundo o qual Washington estaria a ponderar um acordo que incluiria a cedência de territórios atualmente ocupados pela Rússia e a redução significativa das Forças Armadas ucranianas. Para a UE, tal proposta equivaleria a institucionalizar o expansionismo russo, abrindo um precedente de extrema perigosidade para o futuro do continente.
Este posicionamento assenta num entendimento histórico que os EUA parecem subestimar. A Europa conhece demasiado bem o custo da cedência ao agressor. Das capitulações da década de 1930 às guerras dos Balcãs, a História demonstra que recompensar a força com ganhos territoriais não pacifica — incentiva e amplifica a violência.
A advertência de Kallas ecoa essa memória coletiva: um mapa redesenhado pelas armas não produz paz, mas uma estabilidade ilusória e profundamente frágil. A Ucrânia transformar-se-ia não num país pacificado, mas num Estado amputado, condenado a viver sob o espectro permanente de novas exigências.
O mal-estar europeu perante a posição de Washington expõe uma tensão geopolítica crescente. Aceitar um acordo que legitime conquistas militares seria abdicar de qualquer autoridade moral para condenar agressões futuras — seja no Leste Europeu, seja em outras regiões onde o direito internacional ainda funciona como última barreira contra a lógica de força. Por isso mesmo, Bruxelas insiste em duas frentes simultâneas: endurecer as sanções contra Moscovo e reforçar o apoio militar e económico a Kiev. Não para prolongar o conflito, mas para impedir que uma capitulação disfarçada de diplomacia desencadeie um ciclo ainda mais perigoso de instabilidade.
O contraste com a Casa Branca torna-se especialmente sensível no momento em que os EUA procuram recentrar a sua política externa em prioridades internas e na contenção da China. Trump parece apostar na ideia de que um “conflito congelado” libertaria Washington do ónus político e financeiro da guerra. Mas o cálculo ignora a realidade geoestratégica: seria a Europa — e não os EUA — a viver com o conflito às portas. Permitir que Moscovo mantenha os territórios ocupados seria abdicar da segurança continental e da coerência normativa que sustenta a política externa europeia desde o pós-guerra.
Neste contexto, a intervenção de Kaja Kallas ganha outra profundidade. A diplomata estoniana não falou apenas enquanto representante da UE, mas como dirigente de um país que vive sob a sombra histórica e geográfica da Rússia. A experiência dos Estados bálticos confere gravidade adicional ao aviso europeu: uma Rússia recompensada pela agressão seria inevitavelmente uma Rússia mais assertiva perante vizinhos que Moscovo considera “esferas naturais de influência”. A pergunta impõe-se: se a Ucrânia for obrigada a ceder, quem será o próximo?
A resposta europeia não ignora a necessidade de avançar para uma paz duradoura. A UE reconhece que a guerra não pode prolongar-se indefinidamente, mas insiste que qualquer solução tem de ser construída com, e não contra, a Ucrânia. Um acordo que sacrifique a soberania de um Estado apenas produzirá um armistício temporário — e precário. Por isso, Bruxelas considera que a diplomacia só terá legitimidade se assentar em dois pilares fundamentais: a restauração das fronteiras internacionalmente reconhecidas e o reforço das capacidades de defesa ucranianas.
No fundo, a posição europeia não é apenas uma rejeição ao plano norte-americano — é a afirmação de um modelo diferente de segurança internacional. Um modelo que não concebe a paz como mera suspensão de hostilidades, mas como a construção de condições que impeçam o agressor de repetir comportamentos. Um modelo que, ao contrário da lógica das esferas de influência, trata cada Estado como sujeito pleno de direitos, independentemente da sua dimensão ou poder militar. É esse modelo que está hoje em disputa — na Ucrânia, e no próprio futuro da Europa enquanto projecto de paz.
A divergência entre Washington e Bruxelas não deve ser interpretada como rutura, mas como advertência. A estabilidade do continente não pode ser subcontratada a acordos que favoreçam o agressor. Se a Ucrânia for empurrada para uma paz desvantajosa, a credibilidade ocidental ficará irremediavelmente comprometida. E a Rússia, que testa sistematicamente os limites da ordem internacional, terá razões renovadas para acreditar que a força compensa.
É por isso que o alerta de Kaja Kallas ressoou muito para além da conferência de imprensa. Foi um lembrete claro e incisivo de que a paz não se alcança sacrificando a vítima — alcança-se travando o agressor. A Europa, mais do que nunca, sabe-o. E decidiu dizê-lo em voz alta.
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