Enquanto o Estado discute roupas que ninguém usa, mulheres morrem vítimas de violência doméstica e desigualdade. A verdadeira liberdade exige respeito, não imposição.
Em Portugal não há um problema de burcas. Há um problema de violência doméstica – mulheres violentadas e assassinadas todos os dias. Há um problema de ódio e assédio online que circula livremente e de influencers que normalizam o machismo e a misoginia.
Há um problema de governos que continuam a não garantir igualdade real de oportunidades e salários. Há um problema de mães que dificilmente conseguem conciliar a sua função tridimensional: vida familiar, profissional e social. Mas é mais fácil discutir o que uma mulher muçulmana pode ou não vestir do que enfrentar estas violências concretas.
Há um paradoxo gritante na proposta de proibir o uso da burca em Portugal. Em nome da liberdade e da dignidade das mulheres, o Estado decide legislar sobre o corpo e a fé de algumas delas. Ou seja, a pretexto de as libertar, quer ditar-lhes o que podem vestir. Não há nada de emancipador nisto. Isto é paternalismo travestido de progresso.
A hipocrisia é evidente. Portugal tem um problema grave de violência doméstica, tem desigualdade salarial, precariedade, assédio laboral e sexual, uma sobrecarga brutal sobre as mulheres no cuidado e na vida doméstica. Há mães que dificilmente conseguem conciliar a sua função tridimensional – vida familiar, profissional e social – num país que pouco faz por elas. Mas o Estado quer agora “salvá-las” dizendo-lhes como se devem apresentar em público.
Este debate é menos sobre mulheres e segurança, e mais sobre demagogia e identidade nacional. A burca é usada como espantalho para agitar medos e estereótipos, para definir o que é “ser mulher” à imagem da moral europeia.
É o mesmo velho discurso colonial que dizia civilizar povos bárbaros, agora mascarado de feminismo de ocasião. A velha arrogância que sempre quis citar o que as mulheres podem ou não fazer com o seu corpo.
As viúvas do Ribatejo, ainda nos anos 60, vestiam-se de negro e cobriam-se com véus pretos em sinal de luto e decoro. As freiras, ainda hoje, são obrigadas a usar véu e muitas vivem enclausuradas. Mas ninguém propõe proibir esses hábitos. Porquê? Porque o problema não é o véu, mas quem o usa.
As mulheres muçulmanas que decidem usar burca são tratadas como incapazes de pensar por si, como se fossem vítimas sem voz. Ao mesmo tempo, as mulheres ocidentais que se despem são julgadas por se “exibirem”. Em ambos os casos, o corpo feminino é escrutinado, controlado. O machismo muda de forma, mas não desaparece.
O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, no caso *S.A.S. vs. França* (2014), reconheceu que a proibição da burca é uma restrição à liberdade religiosa e individual. Ainda assim, validou-a com base na “coexistência harmoniosa” . Essa decisão introduziu um conceito nebuloso de “vivre ensemble” (vida em sociedade) e abriu uma brecha perigosa: a de permitir que a liberdade fosse limitada em nome de uma ideia abstrata de harmonia pública.
A liberdade não é um conceito à medida da maioria. É um princípio que protege o direito de cada pessoa ser quem é, mesmo quando isso “incomoda”.
O Estado que quer libertar mulheres pela força não é diferente do homem que decide por elas “para o seu bem”.
Neste caso, está a admitir-se que a liberdade deixa de ser um direito e passa a ser uma concessão do poder.
Reconheço que a burca é opressora quando imposta. Mas a resposta não deve ser uma lei que impõe o inverso. A liberdade é sempre um ato de escolha, nunca de imposição. Uma sociedade verdadeiramente laica não tem o direito de interferir na expressão religiosa de ninguém, tal como um Estado não deve proibir uma mulher católica de usar um crucifixo, cobrir a cabeça na igreja ou viver enclausurada num convento. E se uma mulher por vergonha de uma erupção cutânea cobrir o rosto com um lenço? Ou se um homem, por causa de uma alergia, usar um cachecol que só deixe os olhos de fora? Serão multados?
Esta lei é menos sobre mulheres e segurança e mais sobre demagogia. É o reflexo de um país onde se confunde emancipação com paternalismo e liberdade com controlo. É o mesmo oportunismo de sempre, o que usa o corpo das mulheres como campo de batalha ideológica, seja para o oprimir, seja para o exibir.
Em 2016, na Côte d’Azur, polícias obrigaram uma mulher a despir o seu burkini numa praia, sob o pretexto de a proteger. A imagem correu o mundo: quatro homens armados a obrigar uma mulher a despir-se em nome da liberdade. Foi a caricatura perfeita da contradição ocidental.
Os direitos das mulheres em Portugal nasceram da luta, da consciência e da solidariedade. Foram conquistados pelas próprias mulheres, contra o moralismo e o controlo. As mulheres muçulmanas, integradas na nossa sociedade, acarinhadas e respeitadas, farão o mesmo caminho: o da autodeterminação.
Elas não precisam que o Estado lhes diga o que vestir. Precisam que as deixem decidir por si.
Quando um país onde ninguém usa burca decide legislar sobre a burka, não está a libertar mulheres, está a legitimar o preconceito.
E isso, sim, é obsceno.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.