Vivemos num mundo onde o pior insulto que se pode ser é ser pobre. Mais do que a cor da pele, a religião, o sotaque ou a nacionalidade, o que verdadeiramente incomoda, o que assusta e o que repele, é a pobreza. O medo e o desprezo pelos pobres, pelos despossuídos, pelos que nos lembram o que o sistema nos pode fazer se sairmos da linha.
Aporofobia existe, muitos a têm, poucos a reconhecem.
A aporofobia não é nova. É uma herança suja do colonialismo europeu e foi aperfeiçoada pelo capitalismo neoliberal. No fundo, é o que sustenta o próprio edifício da desigualdade: “tu lá em baixo, eu cá em cima”. Tudo o que desafie essa divisão, tudo o que a ponha em causa, seja um pobre que ocupa, um imigrante que exige direitos, uma população oprimida que resiste, é automaticamente rotulado de ameaça, de selvagem, de terrorista.
É por isso que os nómadas digitais não são vistos como imigrantes. Esses não incomodam. Não enchem bairros periféricos, não são apanhados em fiscalizações. Têm passaporte europeu, pagam Airbnbs com rendas exorbitantes, e os seus privilégios blindam-nos.
O mesmo se aplica aos investidores estrangeiros, que compram prédios inteiros para especular com o mercado da habitação, têm benefícios fiscais excelentes, e ainda são aplaudidos como motores da economia. Não precisam de aprender a falar a nossa língua, não são classificados como imigrantes, são estrangeiros a viver em Portugal.
Já os que chegam com fome, com os filhos pela mão, chegam para trabalhar, à procura de uma vida melhor, são olhados como intrusos. A xenofobia, muitas vezes disfarçada de “controlo de fronteiras”, é apenas a aporofobia com outro nome.
Esses mesmos nómadas digitais e os investidores estrangeiros instalam-se nas cidades com rendimentos vindos de fora, e com isso tornam possível pagar rendas que são inacessíveis à maioria da população local. Os bairros populares tornam-se territórios de luxo. A classe média é empurrada para fora dos centros urbanos. E, no fim, ainda nos dizem que é “desenvolvimento”.
A caridadezinha, a esmola, algumas formas de voluntariado, tudo isso serve apenas para manter a distância segura entre o “nós” e o “eles”. Não se trata de inclusão, mas de manutenção da ordem: que fiquem onde estão, mas que saibam que somos “bons”. E quando um pobre se revolta, quando um miserável diz “basta”, a narrativa muda: vira selvagem, vira ameaça à paz, vira alvo a abater.
É o que vemos todos os dias na Palestina, onde a resistência dos oprimidos é tratada como terrorismo, e o genocídio colonial é pintado como “autodefesa”.
Reflete-se em tudo. Nas cidades que constroem muros e condomínios fechados, para separar quem pode de quem incomoda. Nas praias privatizadas ou quase, onde estender uma toalha na areia livre é “coisa de pobre” mas alugar uma cadeira com guarda-sol dá direito a um pedaço de costa. Nas escolas privadas, onde se formam elites isoladas, e nas escolas públicas, que durante décadas segmentaram e separaram os “bons meninos” dos “restantes”, como se a educação fosse um prémio e não um direito universal.
Vivemos num sistema que sabe distinguir um pobre de um rico. Mas não sabe distinguir liberdade de pobreza. Pior: nem quer. Porque a liberdade, num mundo onde a pobreza é normalizada, é um luxo para poucos. É importante ressalvar que a miséria e a pobreza não são a mesma coisa. Há muita gente pobre que não é miserável, que vive com dignidade, solidariedade e coragem. E há muitos ricos mergulhados numa miséria moral profunda. A miséria não é uma questão de rendimentos: é uma escolha social e política.
Há muitos miseráveis ricos, gente com dinheiro e poder, mas vazia de empatia, escrava do status e do lucro. Mas o verdadeiro escândalo, o que a moral dominante não tolera, é um pobre digno, um pobre consciente, um pobre que recusa ser invisível e resiste à opressão e luta pelos seus direitos.
O reconhecimento social de uma vida bem-sucedida é quase sempre lido e fomentado pela mostra de bens materiais, e não pelo seu contributo digno à sociedade.
A aporofobia é a raiz do racismo, da xenofobia, do elitismo, da divisão de classes. É o ódio à pobreza mascarado de civilização. É o nojo disfarçado de mérito. É o desprezo por quem ousa existir sem pertencer ao clube dos eleitos.
Enquanto não enfrentarmos este mal com coragem e frontalidade, enquanto não nos dispusermos a desconstruir os preconceitos que o sustentam, continuaremos a construir muros, a expulsar pessoas, a negar humanidade e a alimentar o monstro da miséria moral que o capitalismo tão bem sabe nutrir.
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