Diz o artigo 37º da Constituição da República Portuguesa: “1. Todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações. 2. O exercício destes direitos não pode ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura. 3. As infrações cometidas no exercício destes direitos ficam submetidas aos princípios gerais de direito criminal ou do ilícito de mera ordenação social, sendo a sua apreciação respetivamente da competência dos tribunais judiciais ou de entidade administrativa independente, nos termos da lei. 4. A todas as pessoas, singulares ou coletivas, é assegurado, em condições de igualdade e eficácia, o direito de resposta e de retificação, bem como o direito a indemnização pelos danos sofridos.”
Cabe aqui expor na Assembleia da República e nas redes sociais os nomes de alunos de uma turma do jardim de infância de uma escola pública? Ou privada, seja lá qual a sua natureza, podemos nomear publicamente crianças? Foi o que fez o Chega, nomeadamente André Ventura, quando disse sentir falta dos nomes João, Maria ou Pedro, acrescentando não entender porque não se pode dizer nomes de crianças no Parlamento.
Na verdade, nem ele nem Rita Matias atiraram nomes à solta ao ar numa sessão do Parlamento. Leram uma lista de nomes de crianças reais, não de bebés reborn. Eram crianças imigrantes, alegando que os filhos dos imigrantes são favorecidos no pré-escolar. A alegação já foi largamente desmentida, pois na lei as condições de acesso a esse nível de ensino nunca referem qualquer nacionalidade.
E a exposição das crianças? Existe alguma lei para isso? José Pedro Aguiar-Branco, presidente da Assembleia da República, diz que tudo faz parte da liberdade de expressão. Tem de haver “capacidade de ouvir a coisa mais abjeta e conseguir contraditar”, defendeu. Só que as crianças visadas não conseguem contraditar, são menores. Em que ficamos?
Um grupo de sete associações de mães, pais e encarregados de educação de escolas em Lisboa divulgou uma carta aberta de repúdio, citando também a Constituição, no seu artigo 26º: “1. A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à proteção legal contra quaisquer formas de discriminação. 2. A lei estabelecerá garantias efetivas contra a obtenção e utilização abusivas, ou contrárias à dignidade humana, de informações relativas às pessoas e famílias.”
A nossa Constituição, de facto, é um mundo.
Qualquer jornalista sabe que não pode usar nomes e imagens de crianças sem autorização expressa dos pais ou tutores, escrita num documento. Trabalhamos diariamente com a liberdade de expressão, mas sabemos que há limites. Se não houvesse, não se entupiam os tribunais com processos de ofensa ao bom nome ou difamação – afinal, iam provar o quê em tribunal?
Há constitucionalistas a falar de atropelos à lei, advogados da Comissão de Proteção de Dados divididos e a polémica jurídica segue. Já sobre a questão moral, não existem muitas dúvidas: quem é capaz de usar crianças do pré-escolar para fazer política? Bom, ficámos a saber exatamente quem. E o pior é que já ninguém se espanta.