A história da política externa portuguesa no pós-25 de Abril é apresentada como uma narrativa de afirmação democrática e reinserção na vida internacional, ficando marcada por compromissos com os direitos humanos, o multilateralismo e a autodeterminação dos povos, exemplificados pela quebra de relações com o regime apartheid da Africa do Sul, que estava intimamente ligado ao regime autocrático em Portugal. No entanto, essa história está cheia de silêncios prolongados, hesitações e contradições que desafiam os princípios que Portugal proclama defender. Um desses pontos cegos é a recusa, por sucessivos governos, em reconhecer o Estado da Palestina.
Este silêncio, é mais inexplicável se atentarmos no reconhecimento formal da Palestina pela Espanha, Irlanda e Noruega. A decisão do governo português de não se unir a este processo necessita de uma reflexão mais profunda sobre o lugar da Palestina na política externa portuguesa e sobre a natureza da nossa relação com Israel desde 1974.
Os primeiros anos da diplomacia democrática
A Revolução dos Cravos, em 1974, marcou uma rutura com as políticas externas do autoritarismo do Estado Novo, isolacionismo e colonialismo. A prioridade dos primeiros governos provisórios foi clara: descolonizar, democratizar e reintegrar Portugal como estado internacional. Foi nesse espírito de abertura que, a 12 de maio de 1977, Portugal estabeleceu relações diplomáticas com o Estado de Israel (1).
O gesto foi visto na época como parte da normalização da presença portuguesa no espaço euro-atlântico e como sinal de alinhamento com as outras democracias europeias, dado que Portugal estava no início do processo de adesão à CEE.
No entanto a decisão de estabelecer relações diplomáticas com Israel não foi acompanhada de um reconhecimento formal do Estado palestiniano, revelando uma assimetria na política externa portuguesa.
Ainda assim, é importante sublinhar que, a partir de 1974, houve esforços diplomáticos para diversificar as relações externas de Portugal, nomeadamente com o mundo árabe. Foram iniciadas aproximações concretas ao Egito, ao Kuwait e ao Iraque, países com os quais Portugal mantinha até então relações praticamente inexistentes, devido ao forte apoio direto dado aos EUA e indireto a Israel durante a Guerra do Yom Kippur.
Simultaneamente, registou-se um início de diálogo com a Organização para a Libertação da Palestina (OLP), nomeadamente através da correspondência entre Yasser Arafat e o Presidente Costa Gomes em 1975 na consequência do 25 de Abril (2), que culminou numa visita em 1977 de Yasser Arafat, recebido pelo porta-voz do Conselho da Revolução (3).
Em 1979, Portugal recebeu ainda uma visita oficial da OLP. Estes gestos, embora importantes, não se traduziram em compromissos políticos duradouros nem em favor da autodeterminação palestiniana. A consolidação das relações com Israel nas décadas seguintes, nomeadamente com os acordos de cooperação de 1994, contrastou com a ausência de passos concretos em direção ao reconhecimento formal da Palestina.
Relações diplomáticas com a Palestina: aproximação formal, distância efetiva
Apesar da ausência de reconhecimento formal do Estado da Palestina, Portugal tem vindo a desenvolver ao longo dos anos uma relação diplomática discreta com a Organização para a Libertação da Palestina (OLP) e com a Autoridade Nacional Palestiniana. Após os Acordos de Oslo de 1993, a diplomacia portuguesa passou a receber representantes palestinianos com regularidade, tendo mesmo apoiado a criação de um posto diplomático da Palestina em Lisboa, hoje com estatuto de Missão da Palestina, tendo ao mesmo tempo criado em 1999, um Escritório de Representação Portuguesa em Ramallah (5).
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Portugal tem votado consistentemente a favor de resoluções das Nações Unidas que reconhecem os direitos do povo palestiniano tendo nomeadamente apoiado, em 2012, o estatuto de observador da Palestina na ONU (6). O País contribuiu também para projetos de cooperação bilateral em áreas como educação e saúde, através do Instituto Camões e de parcerias com a União Europeia. Estes gestos, embora significativos, ficam, contudo, aquém do que seria de esperar de uma política externa coerente em relação ao direito à autodeterminação.
Portugal tem reconhecido a legitimidade da representação palestiniana, acolhido os seus enviados, votado a favor da sua inclusão em fóruns multilaterais, mas recusa-se a dar o passo político mais consequente, o do reconhecimento, passo já dado por 147 dos 193 estados das Nações Unidas (7), cerca 75% de todos os estados-membros.
Incoerência da posição portuguesa
Portugal tem sido forte defensor da chamada “solução dos dois Estados”, no entanto há muito tempo que esta defesa é somente uma fórmula vazia, repetida em comunicados diplomáticos e discursos na ONU, sem consequências práticas. Os sucessivos governos portugueses preferem posicionar-se como observadores, em vez de agentes ativos de justiça internacional.
Esta posição é paradoxal quando confrontada com os princípios constitucionais da nossa política externa. O artigo 7.º da Constituição da República Portuguesa é claro ao afirmar que Portugal se rege “pelos princípios da independência nacional, do respeito pelos direitos do homem, dos direitos dos povos, da igualdade entre os Estados, da solução pacífica dos conflitos internacionais […] e da cooperação com todos os outros povos para a emancipação e o progresso da humanidade”.
Dizer-se defensor dos direitos dos povos, mas hesitar sistematicamente quando se trata do povo palestiniano, é uma hipocrisia insustentável.
Apartheid: um espelho incómodo
Após o 25 de Abril Portugal foi firme na sua condenação do apartheid na África do Sul. Mas, quando confrontado com relatórios internacionais detalhados da Human Rights Watch (9) e da Amnistia Internacional (10) que descrevem o sistema de domínio e apartheid israelita sobre os palestinianos, Lisboa não reage. A dissonância é evidente: por que razão aplicamos determinados padrões morais a uns Estados e não a outros? Porque seguimos cegamente os EUA e o Reino Unido?
É importante notar que a diferença entre o sistema em vigor em Israel e o apartheid sul-africano não é só simbólica ou ideológica. Há elementos estruturais no regime de ocupação e colonização israelita (que é proibida) como o regime jurídico dual, a segregação territorial e a restrição sistemática de direitos fundamentais, que replicam o antigo regime sul-africano.
Quando Portugal se recusa a reconhecer a Palestina está a aceitar e a legitimar um sistema de apartheid moderno.
A lição de Madrid
A hesitação portuguesa contrasta de forma chocante com a posição assumida por Espanha. Em maio de 2024, o governo espanhol liderado por Pedro Sánchez formalizou o reconhecimento do Estado da Palestina (11), acompanhado pela Irlanda e Noruega, num gesto simbólico e político de grande importância internacional. Para além de quebrar com a tradição de hesitação da União Europeia em relação à Palestina, a decisão espanhola demonstra que, mesmo no seio de democracias europeias alinhadas com a NATO, é possível afirmar uma posição de princípio e agir em conformidade com o direito internacional.
Mais do que um gesto isolado, o reconhecimento espanhol demonstra uma atenção ao Sul Global cada vez mais importante, atenção esta que estava historicamente ligada à política externa portuguesa, mas cada vez mais está a ficar ausente da diplomática portuguesa. A política externa de Madrid tem procurado afirmar nos últimos anos um papel ativo no Sul Global, sem receio de enfrentar os custos diplomáticos junto de aliados, principalmente da NATO. Portugal, no entanto, continua preso a uma ideia de prudência excessiva, como se
qualquer tomada de posição clara ou quebra com os aliados fosse uma ameaça ao equilíbrio internacional.
O contraste entre Lisboa e Madrid deve preocupar os portugueses que acreditam numa política externa com autonomia estratégica e densidade moral. A coragem espanhola torna mais visível a cobardia portuguesa.
A política externa como expressão de coragem (ou da sua ausência)
O reconhecimento da Palestina não é um ato de hostilidade contra Israel, como muitos argumentam. É um ato de coerência com os princípios que Portugal diz defender. É também um gesto de alinhamento com o direito internacional, que reconhece desde 1947 o direito dos palestinianos à autodeterminação (12).
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O prolongamento da ocupação, a expansão de colonatos ilegais, a violência sistemática contra civis, o cerco e destruição de Gaza exige uma resposta política clara. Portugal não pode continuar a refugiar-se na ideia da moderação quando a realidade impõe escolhas morais inequívocas. A neutralidade em contexto de injustiça prolongada é uma clara forma de cumplicidade.
A oportunidade que persiste
Portugal tem em 2025 uma oportunidade para se juntar ao grupo de países europeus que reconheceram a Palestina, quebrando o ciclo de adiamento permanente. Pode, com um gesto diplomático afirmar que os direitos dos povos não são objeto de negociação.
Continuar a adiar este reconhecimento é manter-se num limbo moral, num estado de incoerência que enfraquece a nossa credibilidade internacional e desrespeita a nossa própria memória histórica enquanto nação que conheceu a ditadura, a repressão e o colonialismo.
Portugal não pode querer ser respeitado como ator internacional digno se não está disposto a aplicar os seus próprios princípios de forma consequente. Reconhecer a Palestina não é apenas fazer justiça ao povo palestiniano. É também recuperar a dignidade da nossa própria política externa.
1 – Ministério dos Negócios Estrangeiros, Relações bilaterais: Israel, Portal Diplomático, disponível em:
https://portaldiplomatico.mne.gov.pt/relacoesbilaterais/paises-geral/israel.
2 – Arquivo Histórico da Presidência da República, Carta do Presidente do Comité Executivo da Organização
para a Libertação da Palestina e Comandante em Chefe das Forças Armadas da Revolução Palestiniana,
Yasser Arafat, dirigida ao Presidente da República, Francisco da Costa Gomes, saudando ‘todas as forças
patrióticas, democráticas e progressistas de Portugal’ e o povo Português, disponível em:
https://www.arquivo.presidencia.pt/viewer?id=39659&FileID=76794&recordType=Description
3 – Rodrigo Sousa e Castro (@1963Cor_DeVolta), “O Conselho da Revolução em Portugal foi o primeiro Órgão
de Soberania de um País Ocidental a receber Arafat como homem de Estado. Da atitude do governo e da AR à época nem falo. Tive a honra de o receber à entrada do CR.” 3 de novembro de 2023. X.
https://x.com/1963Cor_DeVolta/status/1720450741620335094
4 – Ministério dos Negócios Estrangeiros, Relações bilaterais: Israel, Portal Diplomático, disponível em:
https://portaldiplomatico.mne.gov.pt/relacoesbilaterais/paises-geral/israel.
5 – Ministério dos Negócios Estrangeiros, Relações bilaterais: Palestina, Portal Diplomático, disponível em:
https://portaldiplomatico.mne.gov.pt/relacoesbilaterais/paises-geral/palestina
6 – Resolução A/RES/67/19 da Assembleia Geral da ONU (2012) – Status of Palestine in the United Nations,
disponível em: https://undocs.org/en/A/RES/67/19
7 – Al Jazeera, “Mapping: Which countries recognise Palestine in 2025”, 10 de abril de 2025. Disponível em:
https://www.aljazeera.com/news/2025/4/10/mapping-which-countries-recognise-palestine-in-2025
8 – Constituição da República Portuguesa, Artigo 7.º – Relações Internacionais, disponível em:
https://diariodarepublica.pt/dr/legislacao-consolidada/decreto-aprovacao-constituicao/1976-34520775-50453375
9 – Human Rights Watch, A Threshold Crossed: Israeli Authorities and the Crimes of Apartheid and Persecution, abril de 2021. Disponível em: https://www.hrw.org/report/2021/04/27/threshold-crossed/israeli-authorities-andcrimes-apartheid-and-persecution
10 – Amnistia Internacional, Israel’s Apartheid against Palestinians: Cruel System of Domination and Crime
against Humanity, fevereiro de 2022, disponível em: https://www.amnesty.org/en/documents/mde15/5141/2022/en/
11 – Governo de Espanha, ” Declaración institucional del presidente del Gobierno sobre el reconocimiento del
Estado de Palestina”, 28 de maio de 2024, disponível em: https://www.lamoncloa.gob.es/presidente/actividades/paginas/2024/280524-sanchez-declaracion-estadopalestina.aspx
12 – Resolução 181 da Assembleia Geral das Nações Unidas (1947), sobre a partilha da Palestina. Disponível em: https://www.un.org/unispal/document/auto-insert-185393/
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