No passado, os maiores impérios mercantilistas espalhavam as suas amarras pelo mundo à custa de grandes travessias, canhões a mirar bombordo e algum escorbuto. Hoje, a conquista não se faz com caravelas, naus ou galeões, mas com uma nova rota: algoritmos bem treinados, bases de dados absolutas que dispensam cartógrafos, datacenters gigantes que, como adamastores futuristas, devoram a energia de cidades inteiras. Se antigamente a conquista se dava “contra os canhões”, hoje ela acontece em marcha silenciosa, entre linhas de código e contratos de privacidade que ninguém lê. O verdadeiro poder no mundo já não se traja de manto e coroa, nem jura fidelidade a qualquer brasão. Veste t-shirt e skinny jeans, e reina do alto dos seus servidores o destino de oito mil milhões de almas, que trata por utilizadores.
Esta nova forma de imperialismo não quer saber de fronteiras terrestres, águas territoriais ou espaço aéreo. Apoderou-se de um planeta inteiro, que mantém classificado, arquivado, mapeado, cada vez mais colonizado. Sabe o que te assustou ontem, onde estás a ler isto agora e o que vais querer jantar amanhã. Está a par dos teus projetos para daqui a cinco anos, do carro que vais escolher e até do teu maior arrependimento quando chegares aos sessenta. Se os antigos conquistadores colecionavam gente e território, estes arquivam desejos, medos, rotinas e impulsos, num mundo onde o clique vale mais do que o ouro das Américas e a atenção é mais cobiçada do que a mais rara das especiarias.
Os novos imperadores dizem-se “democráticos”, e é verdade que as consequências do seu domínio são democráticas: não fazem distinção entre operário fabril e engenheiro com mestrado. Primeiro, foram os trabalhadores de colarinho azul a serem colhidos pela foice do automatismo. Agora, a lâmina está novamente afiada para ceifar aqueles colarinhos mais imaculados. É a classe média dos engenheiros, juristas, médicos, professores, jornalistas e até programadores que, sem saberem, passaram anos a desenhar a sua própria obsolescência. Dario Amodei, antigo diretor de investigação da OpenAI e atual CEO da rival Anthropic, afirmou, recentemente, numa entrevista que a IA pode vir a eliminar metade de todos os empregos administrativos de nível inicial, no espaço de um a cinco anos. Alertou ainda que as empresas responsáveis pelo desenvolvimento destes modelos, bem como o governo dos EUA, deviam parar de atirar areia para os olhos sobre o que aí vem: a eliminação em massa de empregos nas áreas de tecnologia, finanças, direito, consultoria, entre muitas outras profissões de escritório. E, se nada é verdadeiramente original, nem os artistas mais imaginativos conseguiriam prever este cenário, com máquinas empanturradas de séculos de criações humanas, agora a regurgitar criatividade a uma velocidade obscena. O que levava anos a aprimorar é hoje cuspido em segundos por um algoritmo que nunca dorme, nunca sofre de bloqueios criativos e, apesar de impostor, não conhece a síndrome com o mesmo nome.
Este domínio, tal como na sua versão mais ancestral, explora os recursos dos territórios ocupados. Além dos energéticos — sugados por datacenters instalados um pouco por todo o lado, como na América Latina, onde até a água potável é desperdiçada para refrigerar estes monstros mecânicos insaciáveis — usurpa e mastiga toda a propriedade intelectual do presente e do passado, toda a informação ou partilha feita por qualquer um de nós ao longo da vida, sem prestar contas a ninguém.
Nesta corrida contemporânea, cada vez mais acelerada, dificilmente alguém estará a salvo. A IA chega como promessa de recurso, mas, no processo, espalha redundâncias pelo mercado de trabalho. E não culpem os robôs por vos roubarem o emprego, porque são eles, os novos imperadores do consumo, os verdadeiros responsáveis por este furto universal cada vez mais anunciado.
Para apaziguar consciências aflitas ou amansar a revolta de quem se prepara para perder décadas de estudo e especialização, acena-se com o Rendimento Básico Universal, uma ideia que até parte da esquerda (a par de muitos tecnocratas de Silicon Valley) quer experimentar, ingenuamente cúmplice deste novo paradigma de traços oligárquicos. A promessa de dinheiro sem contrapartidas, a transição para uma sociedade semiadormecida e satisfeitinha, naquele embalo de conforto medíocre. Com a distração deste possível subsídio global, faz-se a vontade aos novos donos do mundo: anestesia-se a ambição, grilhotina-se a progressão individual e o sonho de um dia poder ter um pouco mais. Nivela-se a vida de todos por baixo, roubando-lhes a possibilidade de qualquer futura conquista.
É claro que existe sempre quem desvalorize estas preocupações e tente convencer-nos de que é o preço habitual do “progresso”. Sam Altman, uma das figuras mais influentes desta nobreza digital dos novos modelos de linguagem, com o desprendimento anafado de quem vive numa torre de marfim, gosta de lembrar que os acendedores de lampiões do século XIX e XX também desapareceram com a chegada da eletricidade, colocando este novo paradigma no saco dos inúmeros “shit happens” da História. Esquece-se de explicar que as transições laborais faziam-se ao longo de décadas, deixando algum tempo para que as pessoas tivessem maior probabilidade de se ajustar. Se Edison popularizou a lâmpada elétrica em 1879, os últimos acendedores de lampiões em Portugal só desapareceram depois de 1940. Hoje, ao fim de décadas de incentivo estatal para que gerações inteiras adiassem a sua entrada no mercado de trabalho — entregando muitos dos seus anos produtivos ao estudo e à coleção de medalhas em forma de diplomas — é-nos pedido, já nos trinta ou quarenta, que aceitemos com leveza este sacrifício repentino de náufrago, quando a maré tecnológica que antes levava uma eternidade a oscilar agora muda em meses, deixando milhões encalhados na praia, a ver navios a passar.
Depois, tal como os padres jesuítas que emparelhavam a “descoberta” com o alcance da palavra de Deus, também este novo império não se contenta só com o domínio material. Há nele uma ambição assumidamente espiritual. Não é por acaso que Karen Hao começa o seu recente livro ‘Empire of AI’ com estas inconfidências de Altman, onde o fundador da OpenAI recorda uma máxima célebre — apesar de desconhecer a autoria, defesa conveniente para quem criou o ChatGPT: “Pessoas bem-sucedidas criam empresas. Pessoas ainda mais bem-sucedidas criam países. As pessoas mais bem-sucedidas criam religiões.” Segue-se outra reflexão reveladora: “Os fundadores mais bem-sucedidos não partem para criar empresas. Eles estão numa missão para criar algo mais parecido com uma religião, e a dada altura percebem que formar uma empresa é simplesmente a forma mais fácil de o fazer.” Está tudo aqui bem escarrapachado. Um novo clero, rodeado de discípulos em forma de fundos de investimento, na promessa de um futuro onde até a morte pode passar a ser facultativa, desde que haja dinheiro para esta assinatura mensal superexclusiva.
Steve Jobs nunca escondeu que via a Apple como uma missão quase espiritual, com a relação entre empresa e culto sempre presente no imaginário criado à sua volta. Mas, atualmente, em Silicon Valley, a fé é cada vez mais transumanista, promovida por nomes como Ray Kurzweil, profeta do upload da mente em computadores; Zoltan Istvan, que fez da fusão homem-máquina uma causa política; Bryan Johnson, quase a reencarnação perfeita da obra ‘O Retrato de Dorian Gray’, de Oscar Wilde; ou figuras como Elon Musk, que adorava chipar-nos a cabeça através da sua Neuralink, e Peter Thiel, um transumanista convicto, com um fraquinho pela vida para lá da morte biológica e uma convicção messiânica de que é possível reescrever o destino humano para sempre. A este clube de visionários junta-se a própria Google, com a Calico, um laboratório criado quase às escondidas e com um orçamento praticamente sem limites, cuja missão assumida é combater o envelhecimento e “resolver a morte”. Naquele reino tecnológico, gasta-se milhares de milhões na busca de terapias para retardar o envelhecimento, aposta-se na impressão de órgãos e numa nova alquimia de vida através da biotecnologia. Todos inscritos e devotos ao grande projeto de transcendência digital. Não se promete o caminho para o paraíso, mas sim o upload da consciência, a juventude eterna por edição genética e a derradeira salvação do “eu” digital, alojado num servidor. O céu deixa de ser metafísico, mas ainda se revela numa cloud. E aqui a entrada não se paga com ave-marias, mas com a carteira de uma elite pornograficamente rica. Nós, os restantes mortais, rezamos por migalhas de longevidade, assistindo de fora, nariz colado ao vidro, ao manjar eterno dos que se atrevem até a desafiar a morte.
Talvez se esqueçam que o que importa só importa porque pode acabar. É a inevitabilidade da morte que nos lembra a urgência de tudo, que nos belisca a preguiça para agir, fazer, escolher, valorizar. Existência sem validade tende a ser existência sem compromisso, e talvez seja isso que almejam, enquanto o resto do mundo continuará a expirar à sua volta, esquecido entre notificações e contratos de subscrição vitalícia.
E o que pode fazer a Europa perante estes novos imperadores digitais, em franca expansão sem a necessidade de respeitar quaisquer tratados? Está nas nossas mãos recusar sermos apenas mais uma colónia de dados ou ratinhos de laboratório numa experiência americana (ou chinesa) de domínio universal. Não adianta tentar legislar o futuro com regras do passado. O caminho exige transparência absoluta a quem desenha algoritmos e uma recusa intransigente a que a privacidade dos cidadãos seja usada como moeda de troca. É urgente tornar a literacia digital num direito básico, ao nível da liberdade, da saúde e da escolaridade. Que se aplique uma nova TSU às empresas que substituem pessoas por robôs, que se taxe quem sacrifica milhões de empregos em nome da inteligência artificial, canalizando esse dinheiro para reformas ou requalificação em áreas onde as máquinas ainda demoram a chegar. Apoie-se e invista-se em consórcios público-privados, com modelos de linguagem europeus e projetos de código aberto, auditáveis por equipas independentes em cada fase do processo. Se há lição que a história nos ensina é que só os impérios que respeitam quem os habita sobrevivem durante mais tempo.
O verdadeiro perigo não está na fantasia de uma elite eternamente jovem, mas numa humanidade bem real, cada vez mais domesticada pelos ensinamentos do algoritmo, convencida de que a felicidade se instala como uma app e de que a ambição é só mais um bug a corrigir no próximo update. Os novos conquistadores já não trazem armaduras nem espadas, mas chegam prontos a nos f…ferir com termos de serviço. O império chegou disfarçado, mas a habilidade já é bem antiga: prometer o mundo, entregá-lo só a alguns e garantir que todos os outros não se lembrem de o pedir de volta.
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