“O meu primo que vive no Reino Unido diz que lá quem tem mais direitos são os cães, depois as mulheres e só depois os homens”, contavam-me ontem. Perguntei que direitos é que os homens tinham a menos do que as mulheres (nem quis mencionar a questão dos cães…) Não me souberam responder. O que sabemos é que isto reflete um conceito que foi abordado numa das sessões paralelas da Democratic National Convention (DNC) a que assisti no mês passado – a ideia de “status existentialism”.
Debatiam o crescimento de forças populistas a ex-primeira-ministra da Suécia, Magdalena Andersson, e a diretora do Domestic Policy Council dos EUA, Neera Tanden. Andersson referiu o descontentamento com as condições económicas como um dos fatores-chave para esse crescimento, bem como a descrença das pessoas com a forma como os políticos vão conseguir melhorar as suas vidas. Não discordando, Tandem levantou um outro ponto: a revolta de certos grupos sócio-demográficos que terão perdido alguns privilégios com governos mais progressistas. O moderador chamou a esta ideia “status existentialism”, em que essa hipotética perda de direitos leva algumas pessoas a considerar o seu estatuto (status) pior do que o que tinham antes e, por isso, procurar soluções em movimentos populistas mais conservadores, que querem o regresso daquilo que “já não se pode”.
Ambos os pontos de vista – o económico e o identitário – podem ser vistos como uma tensão entre ideias de igualdade e privilégio. Podemos dizer que a busca da igualdade (de oportunidades) resulta no fim dos privilégios dos grupos que os detinham. Mas será que esses grupos realmente perdem alguma coisa? A nível relativo, é claro que sim, mas e a nível absoluto?
Se a redistribuição económica, designadamente com impostos progressivos, aponta claramente para uma perda de rendimento dos mais ricos, de forma a redirecioná-lo para os mais pobres, essa perspetiva pode alterar-se mediante a questão de como se cria mais valor. Será que estamos só a partir o bolo de forma diferente ou podemos aumentar o bolo ao fazê-lo? Deixo esta discussão para os economistas. Todavia, não tenhamos ilusões – haverá sempre um grupo de pessoas a quem a redistribuição de rendimentos não convém.
Essas não deveriam assim tantas, mas as crises sucessivas – de inflação, da habitação, de emprego, etc. – e a incapacidade do Estado em mostrar o valor dos seus serviços públicos levam não só os mais ricos como também a classe média a duvidar dos modelos económicos atuais e a procurar outros.
A questão complica-se quando há a percepção de corrupção e de serviços públicos sem qualidade, levando muitos a pensar que o valor que lhes é retirado não é distribuído, mas sim desperdiçado por má gestão. A solução pode passar por mostrar que o problema tem duas tonalidades: o modelo económico, por um lado, e a sua aplicação, por outro. Mas o que interessa um modelo “justo” e “ideal” se a sua aplicação é questionada e problemática? Será melhor um modelo “injusto” que parece ser mais fácil de aplicar? Para alguns, infelizmente, sim – não só porque os beneficia, mas porque permite transmitir uma ideia de eficácia.
A componente identitária – de perda de estatuto ou de privilégio social – é mais fácil de perceber. No entanto, é igualmente difícil de solucionar. Há várias formas de discriminação, mas, usando o exemplo da discriminação de género, é fácil perceber que a nível relativo os homens perderam privilégios com os movimentos sociais para a igualdade. Mas será que perderam direitos? O único que me consegui lembrar na conversa sobre o primo no Reino Unido foi o “direito” que muitos homens sentiam que tinham para assediar mulheres na rua (os “piropos”, por exemplo) e que deixaram de ter. Se pensarmos bem, também as mulheres perderam esse “direito”, mas estranhamente isso não parece ser um problema para elas… Estas lutas “woke” serão sempre mais valorizadas por quem delas beneficia, mas algumas levam mesmo a críticas severas dos que sentem que elas são desnecessárias e, mais do que isso, perigosas para os seus próprios interesses.
Como podemos “conquistar” estes grupos que sentem que perderam os seus privilégios, os seus ganhos relativos? E queremos mesmo “conquistá-los”? É verdade que há coisas que antes podiam (era aceitável) dizer e fazer e que agora não podem. É verdade que tinham antes mais-valias sociais e económicas em relação a outros grupos e que agora as perderam. Mas também ganharam! Os homens podem agora tirar mais tempo de licença de paternidade por causa das lutas feministas. Uma mulher ganhar mais por causa da igualdade salarial aumenta o rendimento disponível de toda a família. Mesmo que vejamos estas questões do ponto de vista individual, e não apenas do que é “justo para a sociedade”, há ganhos também para aqueles que parecem só ver as suas perdas de privilégio e estatuto relativo.
Este “status existencialism” é descrito como um dos fatores que explicam que as mulheres jovens estão a ficar tendencialmente mais progressistas e os jovens homens estão cada vez mais conservadores, como já revelaram vários estudos. Movimentos como o 4B, na Coreia do Sul, em que mulheres se recusam a namorar, ter relações ou filhos com homens, são exemplos do nível de polarização a que se pode chegar.
A verdade é que estou cética sobre o que esta tensão de igualdade vs. privilégio quer dizer para o bem-estar social e político nos próximos anos. Na esquerda portuguesa, há partidos que se centram mais nas lutas de classe (condições económicas) e outros que se focam também nas questões identitárias. Para cada pessoa, dependendo da sua preferência política ou do seu privilégio, haverá um diferente “mix” de assuntos que são ou não relevantes para a sociedade, ou que são “demasiado woke”. Não há uma fórmula mágica para dissipar este ceticismo. Mas, como dizia o governador de Maryland, Wes Moore, no seu discurso na DNC: “Eu não quero que abdiquem do vosso ceticismo. Quero que o vosso ceticismo seja vosso companheiro e não aquilo que vos aprisiona” (“I don’t want you to give up your skepticism. I want your skepticism to be your companion and not your capturer”.)
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