A noite eleitoral foi tudo menos clara, mas há três certezas que temos de assumir desde já: Pedro Nuno Santos não quer governar, Luís Montenegro diz que está pronto para ser indigitado primeiro-ministro e, pela primeira vez na história da democracia nacional, a terceira força política tem 48 deputados (pelo menos) na Assembleia da República. Este último é um partido que se assume como anti-constitucional, tem um discurso de ódio, misoginia e xenofobia. Mas foi eleito por mais de um milhão de portugueses, e espero que os alarmes já tenham soado em todos os grandes partidos, já que foi preciso chegar às urnas para os dados nos baterem na cara.
O que mais surpreendeu, ao longo da noite de ontem, não foi a vitória inequívoca do Chega – quadruplicou o número de deputados, garantindo mais 709 254 votos do que em 2022. O que me surpreendeu foi o espanto que pareceu perpassar no rosto da quase totalidade de comentadores que, nos últimos meses, se dedicaram a traçar cenários e vaticínios para o dia 10 de março, e que se mostraram assombrados com o crescimento meteórico do partido de extrema-direita. Na sua grande maioria, e não por falta de aviso, foram esses mesmos comentadores que deram [muito] palco a uma figura e a um partido que sempre soube, como ninguém, tirar partido desse palanque.
Comentadores, jornalistas, analistas políticos que, não raras vezes, parecem viver num País que não é o mesmo que ontem foi às urnas. Discutir política e governação desde os gabinetes do centro de Lisboa sempre foi um erro mas, nos últimos anos, esse perigo foi-se adensando: as pessoas estão zangadas, descontentes, a viver com mais dificuldades, a pagar mais impostos e a ver os serviços públicos a degradarem-se a ritmos inimagináveis. Começámos a normalizar as mortes nos hospitais por falta de atendimento médicos, as macas nos corredores, as escolas sem aulas, os alunos sem professores, as famílias sem dinheiro. Espantamo-nos com a vitória do Chega no Algarve, mas há anos que ignoramos o facto de os algarvios precisarem de ir até Lisboa ou Coimbra para ter uma consulta no médico; espantamo-nos com a vitória do Chega entre os jovens, mas vemo-los emigrar em vagas absolutamente gigantes, sem lhes dar perspetivas de uma vida adequada à formação e talento que têm; espantamo-nos com a vitória do Chega entre os católicos, mas ignoramos o facto de que assuntos como a ideologia de género causam, mesmo, receio em pessoas que vivem fora das bolhas intelectuais das grandes cidades. Fingimos que todas estas questões são menores, acenamos com as contas certas e, acima de tudo, recusamo-nos a ouvir as queixas e desesperos que as pessoas gritam há meses.
Espantamo-nos com o facto de mais de um milhão de pessoas ter votado num partido populista, mas as televisões aprovaram um formato de debate, em tempos de campanha, que claramente o beneficiava – e devíamos todos ter estado mais atentos ao facto de André Ventura se ter esquivado, mais uma vez, ao debate da rádio, onde efetivamente se discutiu política. Espantamo-nos com uma subida de 700 mil votos no Chega, mas durante meses usámos as perigosíssimas declarações de André Ventura para garantir mais audiências, mais cliques, mais visibilidade. “Isto é televisão”, ouvimos até um diretor de um dos canais televisivos afirmar num final de um dos momentos mais indignos dos debates para as legislativas. Deixámos André Ventura ditar as regras do jogo, dizer mentiras em direto sem contraditório e escrevemos textos muito bonitos sobre o perigo que estes partidos representam para a Democracia, sem que assumíssemos o nosso papel no seu crescimento.
Quisemos acreditar, quando os números da abstenção começaram a ser divulgados, que quem se tinha levantado finalmente do sofá para votar eram as pessoas que queriam uma solução governativa idêntica àquela de que durante anos temos tido na AR. Mas ignorámos, porque temos dificuldade em sair da nossa bolha, que o País real não quer mais do mesmo. Obviamente. Porque mais do mesmo são indemnizações milionárias autorizadas por whatsapp, milhares de euros escondidos em estantes, compadrios, negociatas, penalização para a já penalizada classe média, pior vida para os pobres… não ouvimos os professores que durante semanas ocuparam as ruas, os médicos que durante meses foram avisando, as forças de segurança que se manifestaram de forma nunca antes vista.
Na bolha em que todos nós – jornalistas incluídos – decidimos refugiar-nos, recusámo-nos a que nos passasse pela cabeça que André Ventura, que foi aprender com os espanhóis do Vox a ser o melhor nas redes sociais, conseguisse o resultado que ontem foi claro, sobretudo quando a Democracia celebra 50 anos em Portugal. Porque, parece-me a mim, decidimos também ignorar algo que, de tão simples, nos escapou: os grandes partidos deixaram de dar resposta aos problemas dos portugueses. Têm sido exemplo de má gestão. De má governação e de falta de sentido de Estado, em tantos momentos. E se surge alguém, em modo Messias, a dizer que vai resolver tudo isto de uma assentada, os eleitores acreditam. Porque é a única coisa a que se podem agarrar: à esperança de que pessoas diferentes venham fazer diferente.
Porque é a única coisa a que se podem agarrar: à esperança de que pessoas diferentes venham fazer diferente.
Os versos de Caetano Veloso, que referi acima, são de uma música chamada Sampa. Não raras vezes, no Brasil, se diz que, do ponto de vista político, o avesso do avesso é a sua negação. A política transformada em espetáculo diário ao invés de em administração de um País. É exatamente aqui que estamos. E uma vez que todos os cenários estão em cima da mesa – mesmo o de um regresso às urnas muito antes do que poderíamos esperar – talvez seja bom recordar as palavras de Laurence Rees no seu livro “O Holocausto – uma nova história”:
“Portanto, é nesse momento que tudo começou: um microfone, um palanque, uma retórica imbecil e o trabalho de convencimento. Nesses momentos de campanha, ninguém falava em assassinar crianças judias. Eram apenas homens de bem, preocupados com o futuro da sua nação, lutando contra uma ameaça. Todos religiosos e em nome de Deus”.
Ainda não passaram 100 anos. Substituamos o espanto [que não deixa de ser polvilhado de hipocrisia] por uma vontade real de ouvir as pessoas, e talvez possamos evitar uma repetição da história.