Há trinta anos, a minha irmã tinha uma aparelhagem e eu tinha um rádio com leitor de cassetes. Há trinta anos, a minha irmã lia Miguel Esteves Cardoso e eu a coleção “Uma Aventura”. Há trinta anos, a minha irmã pôs a tocar um álbum em que, em vez de um cantor, surgia um indivíduo a falar com voz grave, e eu, que já elegera os GNR como banda favorita, comecei por reproduzir acriticamente o que ouvia de uma boa parte dos portugueses – que aquilo não prestava para nada, que o fulano não cantava, que aquilo não era música. Penso que, nos trinta anos seguintes, nenhum outro surgimento musical, incluindo o de Salvador Sobral, que ganhou a Eurovisão, provocou tanta conversa e discussão como o de Pedro Abrunhosa. Havia quem lhe chamasse Pedro Horrorosa, lembro-me bem. Outros vibravam, salientando que, por cá, nunca tínhamos ouvido nada assim. Imune ao falatório, ou talvez alimentado também por ele, o sucesso do disco de estreia de Pedro Abrunhosa foi crescendo, até se tornar estrondoso. Em nossa casa, o álbum tocava sem parar na aparelhagem da minha irmã, mas também já no meu rádio, porque eu entretanto já me havia deixado de tretas e gravara uma cassete ferro a partir da original da minha irmã. Falar de cassetes é evocar rudimentos que parecem pertencer a uma realidade pré-histórica, mas neste caso sucede justamente o oposto: aquelas cópias de “Viagens” pareciam conter som vindo do futuro. Aquilo era diferente, ali fazia-se o que nunca tinha sido feito, mesmo que o cantor não fosse cantor e se apresentasse – como fez no documentário dos repetidos concertos dessa digressão nos coliseus – como um entertainer.
Trinta anos depois, sou ainda – e talvez até mais – um grande admirador deste “Viagens”. É um dos trabalhos mais importantes da música portuguesa contemporânea. Durante anos, foi cuidadosamente preparado, na cave do número 235 da Rua do Heroísmo, no Porto, por um professor de música e meia dúzia de alunos. Ele era contrabaixista de formação e fundador da Orquestra de Jazz do Porto, mas, na cidade, talvez o irmão mais velho, Paulo, figura da cena cultural e da noite, fosse mais conhecido. Mas só até “Viagens” ser lançado. Quando, finalmente, ficou pronto, o trabalho – que soava a R&B, agregando toques de soul, funk e até hip-hop, e contava com uma surpreendente participação de Maceo Parker, o saxofonista de James Brown – foi rejeitado por todas as editoras. Até que a Polygram o aceitou. Publicou-o a 1 de janeiro de 1994, faz hoje trinta anos, e vendeu 140 mil cópias.
“Viagens” é daqueles álbuns cujos temas toda a gente conhece, basta que se refiram alguns: “Não Posso Mais”, “É Preciso ter Calma”, “Socorro”, “Lua”, ou “Tudo o que eu te dou”. Em todos, nota-se já o respeito de Abrunhosa pela palavra, que o autor viria a cultivar nas décadas seguintes, mas sobretudo – e ainda no domínio das letras – algo a que Portugal não estava habituado: a assunção de desejos e pulsões, com o recurso a palavras e ditos como charme, desejo, corpo, maldição, castigo, condenação, tentado, querer, louca fantasia, enlouquecer, fúria, prazer e até experimentar o Kama Sutra, só para dar alguns exemplos que mostram como o disco é também uma celebração do amor sensualizado e sexualizado. Ao festejar o amor carnal, em oposição a um certo lirismo de catequese até então vigente, que à juventude quase parecia vir das trovadorescas cantigas de amor, Pedro Abrunhosa mostrava não só que pouco a música portuguesa tinha falado modernamente sobre desejo e paixão, mas também que era possível fazê-lo recorrendo a sonoridades novas, criadas para serem dançadas e cantadas a uma só voz. Foi também nisso que o artista inovou por completo, ao assumir-se como entertainer e ao querer oferecer espetáculos em vez de simples concertos, coisa que trinta anos depois continua a fazer, com notável dedicação e respeito pelo público e também, diga-se, dando em palco um espaço que mais ninguém dá aos músicos que com ele tocam. Nas entrevistas, e apesar de enigmático atrás dos óculos de sol e de insistir no discurso sedutor do disco, complementado por poses e gestos que contribuiriam para a construção do carisma que também o afirmou, já se percebia o homem culto, o artista com voz ativa, que no ano seguinte se acorrentaria às grades do Coliseu do Porto e que nunca se cala em contextos de guerra ou injustiça social, de corrupção ou menoridade moral dos políticos, que com frequência desafia a regressarem ao pensamento, à filosofia, à ética.
Trinta anos depois, eu poderia sugerir que voltássemos a “Viagens”, mas não é necessário. Em rigor, nunca deixámos de ouvir vários dos temas que o compõem e que se mostram intocados pelo tempo. Essa demonstração de pertinência e atualidade só prova que ser recebido com o oposto da indiferença tende a ser bom sinal. Curiosamente, dois meses depois de o primeiro disco de Abrunhosa ser lançado, José Saramago condenava, num artigo escrito num jornal espanhol, a indiferença cívica que afetava aqueles tempos; Pedro Abrunhosa nunca a praticou, como já vimos, mas também nunca exerceu a indiferença musical. E ainda bem. “Viagens” é disso o melhor exemplo.
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