O Natal é a mais maravilhosa época do ano, celebrada religiosa, cultural ou comercialmente por 3,6 mil milhões de pessoas, em 160 países. Será? O impacto negativo desta quadra na nossa saúde mental é tão dominador que é justo hesitar na escolha da figura natalícia, entre o anafado e presenteador Pai Natal e o avarento Ebenezer Scrooge: 2,3 milhões dos celebrantes são temporariamente afetados por sintomas depressivos, fragilidade emocional, solidão, pressão financeira, uma sensação esmagadora de angústia e ansiedade – são os Christmas Blues. Para aqueles que já chegam a dezembro com uma doença mental, sobretudo depressão, as Festas têm muitos efeitos secundários: 64% pioram no Natal – 24% pioram muito, 40% pioram parcialmente. Num mundo onde mais de 1,5 mil milhões de pessoas vivem com doenças mentais e os demais vão experimentando sintomas e níveis de stress que não dão tréguas, quem é que passa mentalmente incólume às várias camadas de pressão natalícia? Quase ninguém acima dos 6 anos.
E o Grinch sabotador da felicidade festiva, quem será? Nós. Esta depressão ou tristeza natalícia nasce das nossas expectativas, que distam anos-luz da realidade. Da curadoria mediática da família, do consumo e da harmonia (d)no Natal, (social) media que insiste em vender perfeição para as nossas vidas imperfeitas. É o erro mais repetido do mundo, com data marcada: à aproximação de cada dezembro, lá vamos nós editar a nossa realidade, encher a casa de luzes e artifícios, sentar à mesa a família das relações ideais, esperando que debaixo da árvore estejam pensos-rápidos emocionais. Quem chega inteiro a dia 26, ainda tem 7 dias pela frente, para analisar o ano velho – e enumerar com as 12 passas os seus fracassos e erros.
Expectativas. As tradições de Natal não são iguais em todos os lugares, e nem todas as culturas o celebram. Mas para os 45% da população mundial que se juntam às Festas, há uma realidade universal: as expectativas. Geradas pela natureza humana e pelo stream mediático vendedor de um ideal de união e de família desligado do formato e dinâmica das famílias contemporâneas. A trindade “Família, Paz e Harmonia Natalícia” é tão fantasiosa como o Pai Natal. Mas tudo isto consumimos, auto-bombardeados pela publicidade e pelas redes sociais, em cujos ecrãs enfiamos o nariz (uma média de) 8 horas por dia.
Os Christmas Blues não são um transtorno de saúde mental inscrito nos catálogos de diagnóstico (a DSM-V americano e o CID da OMS), mas uma condição psicológica de curto prazo de enorme tristeza, solidão, ansiedade e depressão, consensualmente aceite pela comunidade científica. E não é de menosprezar, porque os problemas de saúde mental temporários e curtos podem conduzir velozmente ao longo prazo e a depressões e síndromes de ansiedade clínicos.
Os sintomas são-nos demasiado familiares. Invade-nos um sentimento de tristeza recorrente ou persistente que começa durante ou imediatamente após as festas (o post-Holidays Blues, mas lá vamos), que varia de intensidade e duração e inclui a seguinte sintomatologia: alterações no apetite ou peso, mudanças no padrão de sono, humor depressivo ou irritável, dificuldade de concentração, culpa ou desvalorização, cansaço, ansiedade e tensão, perda de prazer em atividades habitualmente prazenteiras.
Os stressores também nos são conhecidos. Com as expectativas e comparações no topo, seguem-se o stress financeiro e o isolamento e a solidão, muitas vezes regados a açúcares e álcool (depressores de humor por abuso) e amplificados pelas jingle bells repetitivas. É um quadro de enorme dificuldade para uma boa gestão de emoções. Quem tem uma doença mental pré-existente, piora. Quem já foi deprimido ou ansioso, tem nas Festas um perigoso trigger de recorrência. E, segundo um estudo da National Alliance on Mental Health dos EUA, mesmo quem não tem um diagnóstico de transtorno, sente o impacto do Natal na sua saúde mental: 75% passa por sentimentos de tristeza e insatisfação; 68% sente pressão financeira; 66% solidão; 63% experimenta ansiedade esmagadora; 55% nostalgia debilitante.
E depois do Natal. Há ainda quem sobreviva de mente aparentemente ilesaa dezembro, mas ceda à pressão aos primeiros dias de janeiro. Os fantasmas do Natal entram em ação, e a descompressão de picos de adrenalina (felizes ou fruto de níveis de stress absurdos) faz-nos aterrar na realidade de mais um ano que começa, novinho de problemas velhos e inéditos. São os post-Christmas Blues, em tudo semelhantes aos que nos atacam durante as festividades, mas em princípio mais curtos. Os sintomas são os mesmos, a cura aproxima-se da prescrita para o síndrome pós-férias.
Eu nunca gostei particularmente do Natal. Ninguém me conseguiu convencer que o Pai Natal, os 3 Reis Magos ou um Menino Jesus existiam, apareciam e carregavam recompensas a cada 24 de dezembro. Sentia os desafios financeiros familiares com muita acuidade, a minha família nunca correspondeu ao formato tradicional e dividir os dias pelos pais divorciados criava-me sofrimento. Cresci, e não aprendi imediatamente. É também um erro recorrente e crasso, querer corrigir em adulto o que nos calhou em criança. Deprimida e ansiosa década e meia, tive casos sérios de Christmas Blues pela vida de crescida afora sem lhe saber o nome. Até aprender a ignorar os vendilhões do templo, que nos impingem este ideal natalício profundamente desencontrado com a realidade e o calendário da vida. Qual é o impacto de um dia, face aos desafios de 364?
O Natal é “suposto” ser a época mais maravilhosa do ano. Desafiar as suposições pré-fabricadas é um instrumento crítico para enfrentar a pandemia da saúde mental em falta. Em 2022, verdadeiramente festivo é rasgar as aparências em vez do papel de embrulho, sair do armário natalício e dizer “não estou bem, preciso de ajuda”. Ousar a sinceridade. É capaz de nos sair o brinde, e não a fava da tristeza, solidão, ansiedade.
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