Não volto aqui a falar do Brasil para interrogar como é possível 58 milhões de brasileiros terem votado em Jair Bolsonaro… Apesar disso, a eleição de Lula da Silva “salvou” a liberdade, a democracia, a esperança e a possibilidade de futuro no e do país-irmão.
Do ponto de vista externo, o entusiasmo com que a nível global e pelas maiores potências a sua vitória foi recebida, e de imediato reconhecida visando contribuir para evitar tentações golpistas, diz tudo: é o “regresso” de um Brasil que nunca teve tanta presença e tanto prestígio internacionais como sob a presidência de Lula. Já do ponto de vista interno, tudo é e será extremamente complexo e difícil. Meia dúzia de notas, telegráficas, a esse propósito.
1 – O procedimento de Bolsonaro após a derrota teve a sua indisfarçável marca de, além do resto, não democrata. Temeu-se o pior. Não sucedeu, por óbvia falta de condições. Mesmo muitos dos seus mais destacados apoiantes, inclusive militares, logo reconheceram a vitória “limpa” de Lula. Por exemplo, o vice-presidente da República, general Mourão, e o “carrasco” de Lula, ex-juiz Sérgio Moro: se não o tivessem feito estariam a pôr em causa a legitimidade da sua própria eleição para senadores… Igual posição tomaram os presidentes do Senado e da Câmara dos Deputados, este, o “poderoso” Arthur Lira, eleito com o apoio de, e apoiando sempre, Bolsonaro – mas já em diálogo com o novo governo na perspetiva de continuar no cargo.
2 – Bolsonaro não apelou a um “golpe”. Mas não condenou abertamente os seus apoiantes que a ele apelaram em frente aos edifícios de comandos militares e no bloqueio de estradas. Bloqueio que terá tido por trás forças organizadas, “comandos” como os das milícias das fake news ao serviço de Bolsonaro. O corajoso ministro do Supremo Tribunal e presidente do S. T. Eleitoral, Alexandre de Moraes, já ordenou uma investigação criminal às origens e aos chefes das manifestações e dos bloqueios. E também ao diretor da Polícia Rodoviária, um dos vários responsáveis de forças de segurança escolhidos politicamente por Bolsonaro – polícia que não se empenhou em fazer cumprir a lei e em diversas situações esteve mesmo do lado dos bloqueantes. Além de terem impedido de chegar aos locais de voto transportes públicos com previsíveis votantes de Lula.
3 – Durante oito anos Presidente, Lula saiu do Planalto com aprovação de 83% dos brasileiros, um recorde absoluto. Os seus governos, que nunca foram “revolucionários” nem, aliás, operaram mudanças estruturais de esquerda, ultrapassaram as melhores expectativas, exceto num aspeto importantíssimo: a corrupção. Em que as coisas ficaram na mesma ou visivelmente piores, porque mais investigadas (graças… a Lula). Muito explica, mas não justifica, o que se passou. Agora é essencial para o Brasil e a democracia que o novo governo seja, nesse domínio, absolutamente intocável. O que dado o sistema político brasileiro e as práticas nele há muito usuais, é pelo menos dificílimo. Ao contrário do que aconteceu no passado, Lula não pode admitir no governo quem os partidos que o integrarão/apoiarão indicarem, se não tiverem “ficha limpa” e derem sólidas garantias de seriedade.
4 – Com mais de 58 milhões de votantes em Bolsonaro, parte dos quais tão inqualificáveis e tresloucados de ódio como se viu, e à partida com uma Câmara e um Senado maioritariamente desfavoráveis, será possível Lula governar? É uma tarefa hercúlea, mas o novo Presidente, além de carisma e vasta experiência, tem uma capacidade e uma intuição políticas raríssimas. Assim, creio que irá conseguir um mínimo indispensável de governabilidade. Neste sentido aponta o que se está a passar com a transição, sendo a sua equipa chefiada pelo vice Geraldo Alckmin e integrando um conselho com representantes já de 12 partidos.
Neste precário registo telegráfico, anoto que para satisfazer os diversos partidos que integrarão ou apoiarão o novo governo este decerto terá um aumento de ministérios, sendo um deles o da defesa dos povos indígenas. E um sublinhado final para a imprescindibilidade de o integrarem figuras com a dimensão e o simbolismo de Simone Tebet e Marina Silva.
À MARGEM
Mário Centeno
Quando Mário Centeno foi escolhido como governador do Banco de Portugal (BP), essa decisão do Executivo foi muito criticada ou atacada por ele o ter integrado, como ministro das Finanças, com a tutela do próprio banco, por isso vir a ser uma espécie de seu comissário político, dizendo-lhe “ámen” a tudo, etc., etc.
Centeno foi nomeado – em minha opinião muito bem, dada a competência demonstrada quer antes de ser ministro quer como ministro e presidente do Eurogrupo. Agora, António Costa criticou a política do BCE de subida da taxa de juros para combater a inflação; e Centeno, pelo contrário, defendeu essa subida. Então, alguns que não o queriam no BP por vir a ser apenas um “agente” do Governo, criticaram-no por, no exercício da independência do cargo, ter posição diferente da do Governo. E o inenarrável André Ventura, que foi, claro, dos que mais vociferaram contra a nomeação de Centeno, por ser um previsível mero porta-voz ou serventuário do Governo, pediu a demissão de Centeno por ter uma posição diferente da do Governo…
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