Começo com uma confissão. Talvez não devesse, mas a verdade é que frequento o espaço infrequentável que é o Twitter. Normalmente calado, nem por isso menos atento. E estou, portanto, habituado a doses razoáveis de bílis, de impropérios, de violência verbal tantas vezes vomitada por intermédio de bots ou a coberto de cobardérrimos (não estou seguro de que a palavra exista) pseudónimos e avatares. Mas devo confessar que fiquei, ainda assim, espantado com algumas reações epidérmicas e virulentas à morte de Isabel II. É certo que a ideia pacóvia de decretar três dias de luto nacional em Portugal é isso mesmo: uma ideia pacóvia que merece ser ridicularizada. Mas com os diabos. Vale a pena que nos tomemos de calores para ressuscitar, como se não houvesse amanhã, a morta e enterrada questão monárquica? Vale a pena que rasguemos as vestes em defesa das nossas credenciais republicanas? Vale a pena tanto insulto? Paira por aí alguma ameaça real sobre a República de que não me tenha dado conta? Com toda a franqueza, tudo isto me pareceria simplesmente ridículo se não achasse que o episódio é absolutamente revelador da forma como se vai deteriorando a qualidade do debate no espaço público.
Vale a pena dar dois passos atrás e parar para pensar dois minutos sobre o fenómeno. Em tese, a morte de Isabel II, monarca de uma longevidade ímpar num mundo esmagadoramente republicano, poderia ter alimentado um debate intelectual muitíssimo estimulante. Podíamos ter-nos perguntado, por exemplo, que razões explicam, que tantos republicanos, insuspeitos de serem monárquicos no armário ou de terem um qualquer Paiva Couceiro a palpitar dentro deles, se tenham sentido tão genuinamente tocados pelo acontecimento? Podíamos ter-nos perguntado se é possível reconciliar a convicção profunda de que a monarquia, mesmo que reduzida a uma função meramente representativa ou até decorativa, não deixa de ser um sistema político baseado numa atribuição de privilégios iníquos, com a ideia de que aquela possa ser um fator de coesão nacional relevante em contextos plurinacionais como são os do Reino Unido ou de Espanha? Podíamos ter-nos perguntado se será possível rejeitar, com inteira convicção, a denegação do mérito e da ideia de uma radical igualdade de direitos à nascença que a ideia monárquica indiscutivelmente representa e, ainda assim, aceitar a hipótese de que o posicionamento suprapolítico de um monarca possa servir, conjunturalmente, como válvula de escape e como fator de constância estabilizadora de uma qualquer sociedade? Ou podíamos ainda ter-nos perguntado se as nossas modernas repúblicas têm alguma coisa a aprender com a dimensão ritualista e institucionalista das monarquias que ainda sobrevivem.