1. As despudoradas, ética e politicamente criminosas apropriação e manipulação das comemorações de 7 de Setembro por Jair Bolsonaro, para a propaganda eleitoral da sua (re)candidatura à presidência do Brasil, já eram previsíveis, estavam até “anunciadas”, mas ultrapassaram tudo o que se podia imaginar. E foi triste, foi-me mesmo doloroso, durante o habitual desfile militar em Brasília, ver o Presidente de Portugal ao lado de quem envergonha o seu país e sequestra a democracia.
A situação assumiu foros de impensável escândalo quando Marcelo foi temporariamente “substituído” no seu lugar por uma figura de papagaio desplumado, fato todo verde-vivo e gravata amarela: Luciano Hang, multimilionário financiador da campanha de Bolsonaro, a ser investigado criminalmente como um dos elementos do grupo que foi descoberto no WhatsApp a discutir um possível golpe de Estado, caso Lula vença as eleições…
Saído Hang, Marcelo continuou no seu lugar ao lado de Bolsonaro. E ambos foram fotografados tendo em baixo uma bandeira do Brasil, com slogans da campanha do candidato no seu círculo central. Findo o desfile, o Presidente brasileiro desceu da tribuna e fez um comício à sua maneira e ao seu nível. Com referências à “princesa”, sua mulher, “mulher de Deus”, e a si próprio e à sua virilidade: chamando-se “imbrochável”, o que repetiu cinco vezes e “puxou para coro” dos apoiantes. “Imbrochável” não vem no dicionário, mas quer dizer “uma pessoa que não brocha, que não perde a potência sexual”…
Ouvido sobre esta “cerimónia” – a que os próprios presidentes do Senado, da Câmara dos Deputados e do Supremo Tribunal não compareceram –, apesar de tudo o que se passou, Marcelo disse apenas que não tinha sentido “desconforto”. Há duas semanas admiti aqui ser defensável, se não inevitável, a presença do Presidente de Portugal nas cerimónias no Brasil. Acrescentei, porém, ser “absolutamente indispensável que denuncie qualquer instrumentalização dessa presença em favor de Bolsonaro (…), que faça declarações e/ou tenha gestos, tome atitudes, que desde logo impossibilitem qualquer aproveitamento”. Ora, o que se passou ultrapassou as piores previsões e, na circunstância, Marcelo não fez nem disse nada do que devia, antes declarou o que se viu. Lamentável.
Felizmente, na sessão no Congresso – a que Bolsonaro, por razões óbvias, à última hora não foi, e a única a que Marcelo devia ter ido –, o Presidente português interveio, foi o último a falar, a sua intervenção foi muito boa, aplaudida de pé por congressistas e numerosos convidados. A sua parte mais apelativa, e até vibrante, foi aquela em que repetiu, atualizou e ampliou o famoso discurso de António José de Almeida (referido na minha última crónica), quando há 100 anos foi ao Brasil agradecer-lhe ter-se tornado independente. E nem se esqueceu, por exemplo, de lembrar José Aparecido de Oliveira. As televisões portuguesas, algumas delas pelo menos, bem podiam ou deviam ter transmitido essa intervenção, o que julgo que nenhuma fez.
Enfim, e em síntese, para lá da lamentável posição, e/ou falta de posição, de Marcelo face ao que ocorreu em Brasília, a sua participação nas comemorações do bicentenário foi positiva. E, do ponto de vista das eleições de 2 de outubro, não creio que tenha beneficiado Bolsonaro. Pelo contrário – porque mais milhões de brasileiros tenderão a comparar os dois Presidentes e isso só pode desfavorecer o “imbrochável”.
2. Este ano político, para usar a periodização dos anos letivos, de 2022-2023 mostra-se ainda mais cheio de problemas e de incógnitas do que os anteriores: finda a pandemia, persistem muitos dos seus efeitos e, mais relevante, temos a guerra da Ucrânia em pleno e suas consequências progressivamente mais graves, sobretudo para a Europa – entre elas uma inflação como há muito não existia, a excecional subida das taxas de juro do BCE e, no seu seguimento, da Euribor.
Nestas circunstâncias, creio não fazer sentido, e nem lhes trazer dividendos políticos, os partidos da oposição se encarniçarem numa luta contra o Governo, em vez de exercerem uma efetiva vigilância crítica e apresentarem alternativas sérias, factíveis, às suas propostas ou decisões.
À MARGEM
Quando no texto ao lado falo do que penso dever ser o comportamento das oposições nas atuais circunstâncias, considero, do mesmo passo, que isso pressupõe e exige o Governo apresentar com transparência, bem explicado, o que se propõe fazer ou faz – sem ocultar ou manipular nada, mormente elementos importantes para as tomadas de decisão.
E por falar do Governo, duas notas:
1) penso que devia ser aplicada a tal taxa extraordinária aos lucros de empresas beneficiárias da atual situação;
2) na hora da sua saída, uma palavra de especial apreço para Marta Temido – é uma enorme injustiça esquecer ou desvalorizar o que fez durante a pandemia.