Estava escrito nas estrelas (aliás, nas cinco estrelas): a missão de Mario Draghi teria sido sempre uma missão difícil. Liderar um governo tecnocrático de unidade nacional e não eleito, que tentava federar a esquerda e a extrema-direita, passando pelo populismo antissistema, não poderia deixar de ser uma solução frágil e necessariamente temporária. Draghi acaba por cair como vítima das contradições insanáveis da aliança que liderava e dos calculismos imediatistas dos partidos que a integravam.
Mas, se a queda não é absolutamente surpreendente, a verdade é que as consequências que arrasta são absolutamente imprevisíveis. Desde logo para a própria Itália, que, como todos os outros países europeus, está a braços com as consequências económicas da inflação e da guerra e que precisa de garantir ainda o pleno acesso ao fundo de recuperação europeu. Depois, para o próprio euro, na medida em que a Itália tem a segunda maior dívida da zona euro, estava já sob a pressão dos mercados e perde agora a figura que mais confiança lhes transmitia. E, em terceiro lugar, para o esforço de guerra na Ucrânia: Draghi tem sido o rosto do apoio italiano a Kiev e é difícil perceber se este poderia sobreviver a uma coligação de direita que venha a integrar Salvini.
E o ponto a que quero chegar está precisamente relacionado com a Rússia. O caos e a incerteza saídos da convulsão italiana (a que se juntam ainda as dúvidas acerca do futuro político do próprio Draghi) convocam-nos para uma reflexão mais ampla. É certo que há muitas especificidades no caso italiano, assim como também as há na crise britânica de Johnson ou no crescimento dos extremos em França. E é, portanto, abusivo exagerar nos paralelos ou nos nexos de causalidade. Mas há um fenómeno que, para mim, é claro desde há largos meses: a guerra na Ucrânia está aí para durar e a generosa disponibilidade dos europeus para fazer sacrifícios não é infinita. Tal como era previsível, o conflito deixou já de abrir os noticiários. Outras “urgências” caseiras, dos fogos ao SNS, se vão impondo. A agenda mediática raramente é monotemática por muito tempo. A guerra vai-se “normalizando” (horrível expressão) na exata medida em que se vão agudizando os efeitos das sanções e da crise energética que lhes está associada: a inflação já aí está, a subida das taxas de juro também, e é provável que a recessão não tarde. E, com o agravar das consequências, temo bem que a onda de solidariedade europeia para com o sofrimento do povo ucraniano, que marcou as primeiras semanas ou meses da invasão, esteja lentamente a ser substituída por uma segunda onda, feita de instabilidade social e política no seio das várias democracias da união. É irrelevante perceber se há aqui uma estratégia deliberada ou mesmo uma conspiração. E é cedo, repito, para perceber se o nexo existe de facto e se se aprofunda. Mas parece-me pacífico afirmar que este está longe de ser uma mera hipótese académica. Se assim for, o mais certo é que tenhamos pela frente mais e mais convulsões sociais e políticas de consequências tão imprevisíveis como as da crise italiana (que, aliás, nasceu precisamente da discussão de um pacote de ajuda anticrise). Se assim for, pode bem ser que a guerra que começou por ser existencial para o Estado e a nação ucranianos passe a ser também absolutamente existencial para boa parte das democracias da Europa. Se assim for, e ao contrário do que ingenuamente possamos ter pensado, pode não ser apenas o regime tirânico de Putin que é posto à prova. Terrível ironia esta.
Chamem-me pessimista. Cá em casa, dizem o mesmo. Mas a vantagem de olhar para o conflito a partir deste ângulo é uma consciência mais aguda do que está, ou pode estar, em causa. E essa consciência pode ajudar-nos a relativizar (e, portanto, a melhor aceitar) os sacrifícios que somos convocados a fazer. Esta é uma guerra de desgaste e usura. Para os ucranianos, mas também para as democracias europeias. Quanto mais depressa o percebermos, mais depressa podemos vencê-la.
Notas em Forma de Assim
34 anos
É a bonita idade em que, segundo o Eurostat, os jovens portugueses abandonam a casa dos pais. São os mais velhos de todos os jovens da União a fazê-lo (na Suécia, sai-se aos 19). E é um sinal, mais um, da nossa desesperança.
“O coração de um banqueiro também bate”
O sentido de humor, é sabido, é normalmente sinal de inteligência. A capacidade de não nos levarmos demasiado a sério é uma virtude dos mais sábios. É também este homem que os italianos parecem querer dispensar.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.