Vale a pena olhar para a recente polémica com a Lei dos Metadados segundo dois pontos de vista diferentes. O primeiro é aquele a partir do qual se tem focado a generalidade das análises. Refiro-me, naturalmente, à manifesta incompetência do poder legislativo e do Governo para impedir que um problema mais do que antecipável tivesse atingido as proporções que agora atingiu.
O que está em causa é, como se sabe, um acórdão do Tribunal Constitucional, elaborado na sequência de um requerimento da provedora de Justiça, que considerou inconstitucional, a 19 de abril último, a chamada Lei dos Metadados, aprovada em 2008. No essencial, o Tribunal Constitucional vem dizer que é manifestamente excessivo e totalmente desproporcional que as operadoras de telecomunicações sejam autorizadas a guardar os metadados de todas as comunicações, efetuadas por todos os cidadãos, durante o prazo de um ano, com o intuito de ajudar o Ministério Público a investigar e a reprimir crimes graves, como sejam, por exemplo, o terrorismo ou o tráfico de droga. Mais: vem ainda dizer o Tribunal Constitucional que não é admissível que os cidadãos não sejam avisados desta prática e que os referidos dados possam ser guardados fora da União Europeia (prejudicando, assim, a garantia da sua confidencialidade).
Ora, como consequência deste chumbo passa não só a ser impossível que esta prática continue em frente como também passam a ser consideradas nulas todas as provas baseadas na conservação desses metadados, retroativamente, desde a entrada em vigor da norma em questão. Espera-se, portanto, uma avalanche de pedidos de reabertura de processos que tenham feito uso deste expediente. Para uma Justiça que é conhecida pela sua celeridade, convenhamos que era mesmo disto que nós precisávamos.
Mas onde entra exatamente aqui a incompetência do Governo e do poder legislativo? É que, arreliador pormenor, acontece que esta lei resulta da transposição de uma diretiva europeia de 2006, que foi considerada inválida pelo Tribunal de Justiça da União Europeia em… 2014. Ou seja: há oito anos (!) que era mais do que previsível que esta bomba rebentaria, sendo que ninguém achou boa ideia fazer o que quer que fosse para lidar com o problema, impedindo que o problema se avolumasse até se transformar no kafkiano berbicacho que hoje temos pela frente.
E não foi por falta de aviso, que em bom rigor nem precisava de ter existido: em janeiro de 2019, a provedora de Justiça entendeu ser seu dever alertar a ministra da Justiça para o tema. Não fosse esta estar distraída. Francisca van Dunen preferiu enfiar a ministerial cabeça debaixo da areia.
Sobre a incompetência militante estamos, pois, conversados.
Mas vale a pena olhar para outro ângulo desta polémica. Consumado o desastre, agita-se agora a pátria, do governo ao Presidente da República, passando pelo sempre oportuno PSD, no afã de evitar as consequências do chumbo.
Ora, talvez fosse altura, agora, sim, de pausar uns minutos para pensar. Antes de nos pormos a correr para tentar afinar a lei ou mesmo a Constituição, talvez fosse bom perguntarmo-nos se queremos mesmo viver com uma lei com os contornos desta que foi chumbada.
Estou bem consciente de que aquela pode ser uma preciosa ajuda na luta contra alguns tipos de criminalidade. Mas seria bom que percebêssemos também que, no outro prato da balança, está o perigo real de uma devassa total da privacidade de milhões de cidadãos, que não são suspeitos de coisa nenhuma e que, não obstante, vivem, na sua santa ignorância, em estado de permanente vigilância.
A ponderação destes dois objetivos conflituantes entre si deve naturalmente ser feita à luz das nossas particularíssimas circunstâncias. E eu não deixo de achar extraordinário que, num País em que não somos capazes sequer de respeitar o segredo de Justiça, num País em que se fazem, todos os dias, julgamentos na praça pública, seja precisamente a senhora procuradora-geral da República a vir tentar travar a decisão do Tribunal Constitucional.
Lamento, mas, sem instituições mais maduras, responsáveis e credíveis, num contexto tecnológico em que é possível controlar sem esforço todos os passos de todos os cidadãos, eu prefiro não confiar a nenhuma instituição da República a capacidade de fazer essa monstruosa vigilância.
Há males que deviam vir por bem.
Notas em Forma de Assim
“O direito das pessoas a estarem seguras em suas pessoas, casas, papéis e pertences, contra buscas e apreensões não razoáveis (…)”.
Esta é a quarta emenda da Constituição norte-americana. Já no século XVIII se sabia que não existe liberdade sem privacidade.
10%
De acordo com o BP, só um em cada dez alunos que nascem em famílias pobres e com poucas qualificações chega ao Ensino Superior, em Portugal. A escola, enquanto instrumento de nivelamento social, é o nosso maior falhanço coletivo.
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