O Orçamento de Estado para a saúde que o governo apresentou na passada semana à Assembleia da República não traz propriamente grandes novidades: igual, como prometido, ao orçamento chumbado em 2021 e igual ao programa sufragado pelos portugueses nas eleições de janeiro. As mesmas propostas, a generalidade habitual destes documentos, mas também alguma falta de ambição nos fatores críticos de sucesso.
I
Comecemos pelas propostas óbvias, na retórica consensuais, mas na concretização cheias de páginas em branco:
- Mais proteção e prevenção em saúde, são palavras de ordem que ficam sempre bem em qualquer programa, mas que exigem compromissos e metas que pouco se vislumbram neste orçamento. A ideia de cobrir 80% dos cidadãos com USF até ao final da legislatura é uma promessa de meios, não uma promessa de resultados. E todos sabemos que mais USF nem sempre é sinónimo de mais prevenção, mais acompanhamento e melhor controlo das doenças crónicas. As urgências cheias como em 2019, em plena primavera, é um triste sinal da incapacidade das USF.A avaliação do desempenho destas unidades deveria preceder qualquer alargamento do modelo, pois suspeito de que concluirá pela necessidade de mudanças no seu funcionamento.
- Novos investimentos em novos hospitais, novos centros de saúde, mais camas de cuidados continuados e paliativos e a requalificação de estruturas já existentes, parecem inquestionáveis à luz da degradação e da inadequação de equipamentos que hoje existem. A questão é saber aonde estão as verbas e qual o plano de concretização desses projetos. Todos conhecemos a saga do novo Hospital Oriental de Lisboa, cuja primeira pedra foi lançada por José Sócrates em 2008, há 14 anos, portanto…
Chamo a atenção para a importância estratégica de dois novos equipamentos hospitalares (Lisboa Oriental e Évora), para a ampliação do IPO de Lisboa e para a criação de uma unidade de radioterapia em Viseu (necessidade já sinalizada em estudos e decisões políticas com cerca de 10 anos). Mas também chamo a atenção para o esquecimento a que continua votada a zona oeste da Região de Lisboa, servida por um centro hospitalar altamente envelhecido, degradado e sem recursos tecnológicos adequados (Caldas da Rainha, Torres Vedras e Peniche).
- A reforma da saúde mental, cuja porta de novo se entreabre com este orçamento, parece ser também uma necessidade imperiosa, com a promessa de alargar esta valência aos cuidados primários em geral, continuar a desinstitucionalização dos doentes crónicos e fomentar os cuidados continuados em saúde mental. A provisão de 88 milhões de euros para o efeito é que me parece curta, mas continuará com certeza em próximos orçamentos.
- A transição digital adotada como bandeira do governo chegará finalmente à Saúde, com 300 milhões de euros do PRR. O objetivo parece ser criar um RSE (Registo de Saúde Eletrónico) único para cada utente do SNS, que reúna todo o seu percurso e disponha de toda a informação sobre diagnósticos, terapêuticas instituídas (incluindo medicamentos), exames complementares realizados (por imagem ou relatório escrito) e resultados obtidos. Esse passo permitirá a interoperabilidade entre níveis de cuidados e facilitará a continuidade entre cuidados primários, secundários e continuados.
- O reforço da hospitalização domiciliária é uma boa medida, porque promove o tratamento e a reabilitação dos doentes mais velhos, dá-lhes mais humanidade e protege-os dos riscos das IACS (infeções associadas a cuidados de saúde). O trabalho desenvolvido nos últimos anos provaram as vantagens deste modelo, que diminuiu internamentos hospitalares, mostrou efetividade e é mais eficiente.
- Promover a autonomia dos hospitais em matéria de gestão é um anseio antigo de gerações de administradores hospitalares e de médicos que ocupam funções de gestão. Trata-se de dar poder de decisão a quem está na liderança de serviços e instituições e conhece melhor do que ninguém os problemas e as necessidades. Mas isto só pode ser efetivo se devidamente identificadas as novas competências e o financiamento baseado num compromisso entre a tutela e as instituições, marcado por contratos – programa bem definidos, concisos nos objetivos e com permanente escrutínio sobre o desempenho. Acabaram as PPP nos hospitais, mas não custava nada aplicar o mesmo modelo contratual aos hospitais EPE. O governo é, nesta matéria, tímido, pouco claro e com ideia avulsas.
II
Mas vamos agora às medidas menos consensuais e nalguns casos muito controversas:
- Percebe-se a ideia da “dedicação plena”, a começar já este ano para os médicos. Já na passada semana esclareci nesta rúbrica a diferença entre exclusividade e dedicação plena. A primeira é um tiro no escuro, porque garante aumento de remunerações para os profissionais, mas não garante mais serviço prestado e mais doentes tratados. A segunda pressupõe compromissos assumidos de produção e qualidade em que todos saem a ganhar: profissionais, instituições e doentes. Também é compreensível que o OE não avance muito como será aplicado esse conceito, porque isso concretizar-se-á nas negociações com as profissões. Mas já será pouco aceitável que não se encontrem verbas previstas para essa alteração contratual. Parece estar tudo ainda muito verde e provavelmente passaremos este ano em negociações e impasses…
- Já se percebe mal a mudança estrutural indiciada para as urgências hospitalares. Aqui o que precisamos é de as diminuir e isso faz-se com medidas corajosas que reorientem a procura para os cuidados primários. Tomar medidas que vão no sentido de concentrar urgências em menos locais de prestação, pode ser economicamente aliciante, mas poderá infernizar ainda mais a vida dos utentes. Não é com medidas administrativas que se resolvem problemas estruturais.
- Do mesmo modo, parece ser contraproducente aliciar os médicos para realizarem mais horas extraordinárias nas urgências, através da majoração do valor-hora a partir de um certo volume. Tal incentivo é deslocado, porque o que precisamos é motivar os médicos de família para reter e tratar os seus inscritos e deixar para os médicos hospitalares o trabalho mais especializado e programado. Esta medida inscrita no orçamento vai aumentar, ainda mais, a carga do trabalho de urgência nos horários dos médicos hospitalares, o que pode revelar-se desastroso.
- A criação da figura de um diretor-executivo para o SNS, com funções gerais de coordenação de toda a atividade clínica, surge como uma redundância com pouco sentido. Temos o ministério da saúde e os 3 membros do governo, a ACSS, as ARS e as administrações dos ACES e dos hospitais e, ainda, as entidades de regulação (DGS,ERS, INFARMED e IGAS). Não será fácil encontrar espaço para mais competências. Mas fica sempre por explicar a razão para uma figura centralizadora, num modelo que se quer cada vez mais regionalizado, como a hierarquia das referenciações clinicas aponta. De facto, cada Região de Saúde possui um nível de competências técnicas que cumpre, com a exceção do Algarve e do Alentejo, todo o leque de prestações disponíveis no SNS. Poder-se-ia dar às administrações regionais competências de supervisão efetiva sobre toda a Região e adaptar as exceções do Sul do país às circunstâncias, para termos modelos eficientes e compreensivos de coordenação e acompanhamento. Parece ser uma fuga em frente, face à falta de capacidade de operacionalizar o que já existe.
No cômputo global, o orçamento para a saúde aponta para um aumento de transferências do OE, entre 2016 e 2022, de mais de 3 mil milhões de euros, que contrasta com a diminuição de 825 milhões de euros do ciclo governamental anterior (2010-2015). É a confirmação ineludível do esforço financeiro que este governo tem feito na área da saúde. Só em recursos humanos, o Estado aumentou em 24% o número de efetivo entre 2015 e 2021. Mas isso não teve idêntico impacto na atividade. As consultas médicas em cuidados primários aumentaram 18%, as consultas hospitalares 6%, as cirurgias 8,4% e os internamentos baixaram 11%. Tudo parece indicar uma diminuição da produtividade do fator humano no SNS, constatação que a todos e, especialmente, aos governantes, deveria preocupar.
Finalmente, o SNS continua a ser o pior pagador no cumprimento de prazos, no âmbito dos serviços e institutos públicos. O valor dos pagamentos em atraso melhorou significativamente entre 2019 e 2021, passando de 290,5 milhões de euros para 124,1, ou seja menos 57,3%, o que não deixa de ser uma boa notícia. Mas quando olhamos para as outras funções do Estado, praticamente só a Cultura tem pagamentos em atraso e em montante incomparavelmente inferior (21,6 milhões de euros em 2021).
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