Com a maioria absoluta, abre-se ao governo uma nova oportunidade para desenvolver políticas reformistas em diferentes domínios, sem contemporizar com pressões corporativas, partidárias ou ideológicas que pouco ou nada têm a ver com o interesse público. Na saúde, há muito que se reclamam reformas que façam reduzir os tempos de espera no acesso, o excesso de urgências ou o desperdício crónico de recursos (de pessoas mas, sobretudo, de instalações e equipamentos subutilizados). Sucessivos governos têm adiado as decisões que se impõem, umas vezes por medo das reações adversas dos interesses instalados, outras vezes por jogos políticos que preferem equilíbrios e pequenos compromissos conjunturais, do que atacar verdadeiramente os problemas, que se arrastam e agravam. A ministra da saúde conhece muito bem o setor e já demonstrou capacidade e energia ao longo destes anos, nomeadamente na forma como liderou a luta contra a Covid.
Por isso, deixo-lhe 10 sugestões sobre outras tantas mudanças críticas na área da saúde:
- Seja proativa e lidere a iniciativa política
Temos assistido nos últimos anos à pressão constante das corporações e dos sindicatos, lutando por medidas que satisfaçam os seus interesses, muitas vezes de forma avulsa e contraditória. Os governos têm-se deixado enredar nessa agenda reivindicativa, respondendo aqui e ali com decisões pontuais que apenas acalmam temporariamente os interesses, mas nunca atingem o cerne dos problemas. A ministra da saúde deveria retomar o diálogo com as ordens profissionais, mas apresentando um plano articulado de reformas que as envolva e que explique o sentido e a orientação que se pretende imprimir. Sabemos que as ordens têm tido um comportamento hostil, por vezes deselegante e desrespeitoso, mas é tempo de ultrapassar mágoas e demonstrar vontade em transformar o que está mal.
- Reavalie o funcionamento dos cuidados de saúde primários
Vivemos, nesta matéria, num equívoco. As mudanças introduzidas com o advento das USF trouxeram algum valor acrescentado no atendimento e controlo de algumas patologias. Mas rapidamente demostraram as suas limitações e estrangulamentos, deixando de corresponder às expetativas dos cidadãos. As urgências hospitalares não param de aumentar, alimentadas por casos que deveriam ser resolvidos nos cuidados primários. A maioria dos utentes não consegue contacto com o seu médico de família ou obter uma consulta para o próprio dia, os médicos de família não vão a casa dos seus doentes mais frágeis e mais idosos e com fortes debilidades de mobilização. Muitos dos indicadores utilizados para avaliar os cuidados primários não passam de boas intenções, inconsequentes para melhorar a vida dos doentes. O controlo da diabetes, da hipertensão ou da insuficiência cardíaca não se faz com meros registos de sinalização administrativa. Pressupõe a criação de indicadores que avaliem a situação de saúde de cada doente, com dados clínicos objetivos que ilustrem o valor criado e evitem as idas às urgências.
Por outro lado, impõe-se uma atualização urgente do número de utentes por médico de família, quando sabemos que há mais utentes do que cidadãos. Há irrefutavelmente muitos “inscritos fictícios”, ou porque estão registados em mais do que um médico, ou porque não residem em Portugal (estrangeiros com residência temporária e que partiram ou portugueses que emigraram). Com esta revisão dos inscritos iriamos abrir vagas para mais utentes que se estima em mais de 30% por médico (cerca de 500 utentes).
Noutra perspetiva, a transferência de utentes para os serviços de urgência (deliberada ou por opção do inscrito) deveria ser objeto de medida, definindo-se padrões de referência aceitáveis e incentivos para a retenção pelo médico de família. Estes incentivos deveriam abranger as visitas domiciliárias e a articulação com os médicos hospitalares, situações que praticamente não acontecem e devemos estimular.
- Promova medidas que integrem a prestação de cuidados e reforcem a atenção sobre o doente crónico
A criação das Unidades Locais de Saúde foi, à época, com a Ministra Maria de Belém Roseira, uma iniciativa de grande visão mas que não teve o desenvolvimento que se esperava. Os dois eixos da resposta dessas unidades – cuidados primários e hospitalares – continuam separados, sem medidas efetivas de integração que permitam acompanhar os utentes e reduzir as urgências e as necessidades de internamento. Esta integração deverá ser aprofundada e só depois se deverá encara a criação de novas ULS.
O envelhecimento da população portuguesa (a segunda posição no índice de envelhecimento dos países europeus) recomendaria uma nova dinâmica na abordagem do doente crónico em que, infelizmente, sucessivos governos têm falhado. Não precisamos só de mais camas de cuidados continuados e de mais lares que as possam substituir (estes sem competências em cuidados de saúde, como se viu com a COVID). Precisamos de uma rede comunitária com diferentes valências (médica, de enfermagem, serviço social, psicologia, fisioterapia e terapia ocupacional, de cuidadores informais,etc.) que proporcione a continuidade de cuidados e mantenha o doente, sempre que possível, na sua comunidade, em articulação estreita com os cuidados de saúde primários e os hospitais. A liderança política desta ambição deve envolver vários ministérios, mas a saúde desempenha aqui o papel decisivo.
- Introduza medidas inovadoras no funcionamento das urgências
Os serviços de urgência hospitalar são um dos maiores sorvedouros de recursos humanos do SNS. A revisão das equipas, dimensionando-as melhor e de modo flexível à procura, passa por uma decisão política que trace novas regras de funcionamento: horários máximos de 8 horas contínuas para todos os profissionais, descanso obrigatório apenas nas 8 horas subsequentes, aumento dos limites de idade para a classe médica (60 anos durante o dia e 55 anos durante a noite), redução de horas contratadas a empresas de trabalho temporário. Este conjunto de medidas, a par de uma reorganização do modelo de atendimento, poderão contribuir para mais segurança na prestação, menos tempo de espera e encaminhamento mais rápido dos doentes.
- Inicie uma reforma profunda nas carreiras profissionais
As carreiras da saúde estão manifestamente inadaptadas à realidade que, cada vez mais, exige dedicação a tempo inteiro, motivação e disponibilidade. Não é possível rentabilizar os serviços e aumentar a capacidade de resposta, com serviços a funcionar a meio tempo. Os horários de funcionamento normal dos hospitais e dos centros de saúde deveriam ser, como está aliás previsto, das 8 às 20, durante a semana, e das 8 às 13 aos sábados. Encerrar laboratórios, consultas ou blocos operatórios às 14 ou 15h e não trabalhar aos sábados é uma manifestação de impotência e de insensibilidade face aos milhares de doentes que aguardam há meses ou anos uma resposta do SNS. A comparação deste cenário com o que se passa no setor privado, em que as respostas são no próprio dia, é insustentável e provoca uma transferência constante de utentes para este setor, sempre que podem, o que cria iniquidades acrescidas no acesso.
O aumento significativo que se espera nas remunerações, sobretudo na área médica, tem que ter como contrapartida mais tempo dedicado aos serviços públicos. Não será orçamentalmente possível oferecer tais aumentos de uma só vez e no curto prazo. O governo deverá negociar com as ordens e os sindicatos, um processo de reforma das remunerações e das carreiras, de longo prazo, com etapas pré-definidas, criação gradual de incentivos e de prémios por objetivos.
- Conceda mais autonomia à gestão dos hospitais
As administrações hospitalares reclamam desde sempre mais autonomia, que lhes permita uma adaptação pronta às alterações da procura e da evolução das tecnologias médicas. Depender sistematicamente da autorização do ministério das finanças para contratar um assistente operacional ou para alterar as dotações de efetivos no quadro, torna a gestão rígida e incapaz de responder atempadamente aos novos desafios. A contratualização entre os conselhos de administração e o ministério da saúde não pode continuar a ser uma formalidade, logo contrariada no passo seguinte. Os orçamentos negociados, com um novo formato que valorize mais os resultados do que o volume de atos (por ex, diminuir tempos de espera ou taxas de infeção, aumentar os tempos de utilização dos blocos operatórios ou promover mais satisfação junto dos doentes, baixar o nível de complicações ou as taxas de reinternamento, reduzir as taxas de mortalidade hospitalar por especialidade), deveriam ser para cumprir, de acordo com as tabelas de preços em vigor e criando incentivos para as melhores práticas. O equilibro das contas deve ser uma tarefa da exclusiva responsabilidade das administrações, com o alinhamento indispensável das diferentes direções médicas.
- Promova uma reestruturação nos sistemas de informação da saúde
Não é possível introduzir reformas profundas na saúde sem a revisão integral dos sistemas de informação. Os serviços clínicos dispõem hoje de uma imensidão de plataformas de registo e de programas informáticos cujos conteúdos não obedecem a uma linguagem comum e interoperável. Não dispomos de um processo clinico único por doente no SNS que permita o acesso de um profissional credenciado em qualquer ponto da rede e muito menos no próprio domicílio do utente. Isso retira resiliência, flexibilidade e rapidez nas respostas e provoca frequentes redundâncias e tempo perdido em procedimentos de diagnóstico evitáveis.
Esta é uma área instrumental vital se quisermos integrar cuidados de saúde e caminharmos para o seu foco na comunidade e não nas instituições. Estamos nesta matéria muito atrasados face ao que de melhor se faz já no mundo e a força e a liderança decidida do ministério da saúde é essencial.
- Invista na Saúde Pública com mais médicos e outros profissionais e melhores condições de trabalho
A saúde pública tem sido um dos parentes pobres do SNS. Poucos recursos, trabalho burocrático e repetitivo, pouco reconhecimento. É tempo de inverter este cenário, porque os desafios que a sociedade moderna nos coloca a isso obriga: as questões ambientais, as catástrofes naturais, as pandemias (como agora se percebeu), os efeitos de guerras cada vez mais suportadas por armas químicas e biológicas, exigem dos Estados um apetrechamento em saúde pública e em investigação epidemiológica, com mais investimento, mais especialistas e novas tecnologias.
- Privilegie a Saúde Mental
A saúde mental é mais um parente pobre do nosso SNS. Houve, ao longo destes 48 anos de democracia, momentos de entusiasmo face às propostas de reforma para a saúde mental. Muitos profissionais e doentes foram envolvidos em projetos de desinstitucionalização relativamente bem sucedidos, as grandes e tradicionais instituições hospitalares viram reduzidas substancialmente as suas lotações ou foram mesmo encerradas, como ocorreu com o Hospital Miguel Bombarda, em Lisboa. Os objetivos tinham por base dar a muitos doentes crónicos institucionalizados a oportunidade de voltarem á comunidade e saírem do torpor e isolamento em que viviam. A farmacologia tinha evoluído muito e era possível tornar um doente com uma esquizofrenia, funcional, reiniciando uma vida profissional ou integrando uma família.
Estes processos não são fáceis, porque vivemos numa sociedade ainda muito estigmatizada, em que ao doente mental não se lhe reconhecem direitos como os de um cidadão dito normal.
Em simultâneo, desenvolveram-se estratégias de integração da saúde mental nos estabelecimentos destinados à saúde geral, como forma, não só de combate à segregação desses doentes, mas também para que os mesmos passassem a ser encarados de forma holística, em que as questões de saúde geral se interpenetram com a saúde mental.
Todo este esforço e estas transformações foram passos positivos que convém não esquecer. Mas ficou sempre por definir um modelo de financiamento adequado para este setor, que estimulasse o tratamento célere da doença aguda e recompensasse as instituições que cuidam dos doentes. Os baixos valores pagos pelo Estado, ainda no modelo de diária (manifestamente inadequado para a reabilitação do doente crónico) conduzem as instituições para um tipo de assistência tecnicamente pouco diferenciado e pobre nas condições de hotelaria e conforto. Isto aplica-se às instituições públicas, mas também àquelas, de natureza social, que acabam por receber doentes crónicos (principalmente ordens religiosas e misericórdias).É tempo do ministério da saúde se dedicar a esta área, contribuindo ativamente para a dignificação destes doentes.
- Crie um registo nacional de profissionais de saúde
Não sabemos quantos médicos trabalham em Portugal, em que regime e em quantos estabelecimentos ou consultórios. As instâncias internacionais não acreditam nos números que são divulgados pela Ordem dos Médicos, entidade que tem a competência sobre o cadastro médico, pois admitem que muitos desses médicos (cerca de 30%) já não trabalham por limite de idade ou impossibilidade física e mental de o fazer.
Por estas e outras razões, o governo anterior propôs-se avocar para os serviços centrais do Ministério a competência de realizar e manter atualizado o registo das profissões de saúde.
O assunto parece ter morrido, mas era agora a altura certa para retomar esse projeto. Não se podem encetar reformas consistentes no SNS sem termos um planeamento credível sobre os recursos humanos que temos e vamos necessitar no futuro. Por outro lado, o desempenho de profissões que envolvem riscos e responsabilidades da magnitude dos que estão em causa nos sistemas de saúde, pressupõe um conhecimento rigoroso dos vínculos laborais e dos respetivos horários de trabalho, questão central para se perceber quem faz o quê e em que circunstancias. Não é apenas uma questão de prevenir incompatibilidades é, sobretudo, uma questão de esclarecer responsabilidades, quando as coisas correm mal ou há reclamações.
Todos teremos a ganhar com a intervenção isenta do ministério da saúde, quando as próprias ordens são incapazes de desempenhar cabalmente a sua missão.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.