O site da Ordem dos Médicos publicou recentemente uma posição conjunta dos colégios das especialidades de medicina geral e familiar e medicina interna intitulado “Contributos para a melhoria da acessibilidade aos serviços de urgência”. Trata-se de um documento curioso que, ao contrário do habitual na OM, pretende refletir mais sobre a organização e a gestão dos serviços de urgência do que propriamente sobre a falta de recursos. Não é um documento oficial da OM, diga-se, pois não foi homologado pelo seu Conselho Nacional, mas contém algumas ideias que merecem reflexão.
A primeira nota de interesse prende-se justamente com a sua visão estratégica: mais do que recursos, importa mudar o paradigma da organização dos cuidados prestados à doença aguda ou agudizada. Não basta alocar sempre mais recursos e reforçar equipas. Exige-se “uma nova visão e uma nova missão para os serviços de urgência”. E estabelecem-se aqui dois “drives” essenciais: otimizar de forma integrada (a montante) a gestão dos cuidados e reduzir, consequentemente, a procura de urgência. Mais do que aumentar recursos propõe-se a sua reestruturação.
A segunda nota de interesse prende-se com a criação de uma nova especialidade médica dedicada à urgência – os emergencistas (ou outra designação mais feliz). Há já algum tempo que a Ordem vem batalhando por esta nova especialidade, convencida de que isso contribuirá para regularizar os serviços de urgência, melhorar o seu funcionamento e libertar recursos para outras tarefas. O documento que agora foi publicado parece não acreditar muito nas virtudes desta nova especialidade para os objetivos que pretende atingir. De facto, as urgências estão cheias de casos simples, mais ajustados à oferta dos cuidados primários, e colocar no “front office” um especialista em emergência é um desperdício de competências e um esforço inútil. Por outro lado, os serviços de urgência funcionam como uma “walking clinic”e aí surgem diariamente casos que envolvem o contributo imediato de outras especialidades (medicina interna, cirurgia geral, ortopedia, gastro, urologia, pneumologia, infeciologia, oftalmologia,etc.). Ou seja, como diz o documento, os “emergencistas” nunca substituiriam os especialistas de outras valências e nunca poderiam funcionar como um corpo de urgência autónomo.
Os contributos destes dois colégios da especialidade não avançam muito nas soluções concretas, mas sempre vão afirmando algumas posições de princípio que vale a pena considerar: os serviços de urgência devem estar integrados com a consulta externa e o internamento hospitalar; é importante caraterizar os chamados híper frequentadores das urgências e encontrar soluções que os retirem desses serviços; a doença crónica deve ter uma abordagem integrada que congregue o esforço conjunto e articulado entre o médico de família e os especialistas hospitalares; os cuidados de saúde primários devem ser adequados à doença aguda; os cidadãos devem ter informação que evite a urgência como porta de entrada no sistema. Todo este conjunto de sugestões tenderiam a fazer diminuir o afluxo diário às urgências hospitalares, criando a montante alternativas de resposta.
Penso que o excesso de urgências (diminuíram consideravelmente com a pandemia, nalguns períodos mais de 40%) deve ter, de facto, uma abordagem sistémica que identifique bem as razões e proponha soluções concretas e consistentes. Sabendo que a casuística é predominantemente não urgente a melhor resposta seria em sede de cuidados primários, por definição de primeira instância, e que entre nós tem nos médicos de família o pivô responsável pela manutenção da saúde e pelo papel de “gate keeper”. Isto significa, proatividade, proximidade, integração na comunidade, contacto fácil permanente, disponibilidade para ir a casa dos seus utentes quando necessário, capacidade de antecipar agudizações no estado de saúde do doente crónico e articulação e diálogo constante com os médicos hospitalares. Se bem pensarmos, nenhum destes atributos está presente no modelo de medicina geral e familiar existente entre nós. É exclusivamente institucionalizado (centros de saúde e ACES), responde com atraso aos pedidos de consulta, obriga os doentes a deslocações penosas só para, em filas intermináveis, marcarem a sua consulta, prescrevem, muitas vezes repetidamente, os mesmos fármacos sem avaliação do doente ou referenciam para os hospitais grande parte das situações a que deveriam responder. É por isso, e não tanto por iliteracia, que muitos utentes preferem dirigir-se diretamente aos serviços de urgência, na certeza, pelo menos, de que terão acesso a um conjunto de meios de diagnóstico, na ilusão de que essa é a boa prática médica. As urgências não são só espaços com pessoas a mais, são também espaços com excesso de exames complementares, dispendiosos e redundantes ou inúteis.
Os serviços de saúde públicos (SNS) carecem, ancestralmente, de um sistema de informação integrado que concentre num único processo os percursos de cada doente. Só deste modo um clinico, em qualquer ponto da rede, teria acesso imediato ao quadro completo de doenças, à sua complexidade e à sua gravidade e conseguiria resolver ou propor soluções clínicas consentâneas com cada situação. Há várias décadas que alguns países adotam estratégias de classificação dos doentes com base nos seus riscos associados de adoecer ou de ver agravadas as suas patologias. Os médicos de família têm as suas listas de utentes construídas nessa base de complexidade e gravidade e não apenas com base na idade e no sexo, elementos que pouco ajudam nessa diferenciação. São avaliados periodicamente pela carga de doença que conseguem estabilizar ou reduzir e não por atos procedimentais, como acontece entre nós. A referenciação de doentes da sua lista para os hospitais é criteriosamente avaliada à luz das capacidades próprias de poder resolver e acompanhar os casos. E de tudo isto resulta uma medicina familiar mais resolutiva, mais disponível e mais confiável.
Hoje em dia, as metodologias de abordagem da medicina geral e familiar para o doente crónico, incorporam modelos de “disease management” e de “case management”. Os primeiros implicam protocolos de acompanhamento para o doente crónico com algumas patologias específicas (asma, DPOC, insuficiência cardíaca, alzheimer, insuficiência renal, diabetes,etc.); os segundos centram uma estratégia de acompanhamento específico para doentes específicos com multipatologia, sobretudo para casos de complexidade ou gravidade elevadas. Traçar planos de intervenção para estes dois diferentes grupos-alvo, exige o alinhamento de diferentes valências e serviços comunitários de apoio, coordenados em primeira linha pelo médico de família, mas secundariamente pela valência que em cada momento representa o maior risco que o doente corre. Experiências levadas a cabo em diversos países (Reino Unido, Canadá, EUA, Austrália, países nórdicos ou Nova Zelândia) ilustram bem os progressos que se podem conseguir na redução dos internamentos e no aumento da esperança e da qualidade de vida de milhares de doentes.
Mas os serviços de urgência hospitalares têm, em Portugal, outros problemas e implicações que o documento apresentado não abordou: a) os critérios de constituição das equipas médicas e respetivos horários; b) os tempos de espera dos doentes após a triagem; c) os doentes em SO (sala de observações).
As equipas médicas têm frequentemente, e em algumas valências, elementos a mais (e não a menos como a comunicação social é levada a concluir). Os ratios de cobertura em presença física, ao longo das 24 horas do dia são relativamente fixos, quando a procura tem picos e horas em baixa bem tipificados, o que deveria implicar oscilações também nas dotações; algumas especialidades e profissionais deveriam estar em regime de chamada e não em presença física, mas todos percebemos porque é que isso raramente acontece. Os horários de trabalho são, regra geral, de 24 horas consecutivas, o que não é de todo aceitável, nem para os doentes nem para os profissionais, pelo desgaste que isso provoca e os riscos de má prática. A OM nunca se pronuncia sobre esta questão, parecendo conviver bem com este risco e esta anormalidade. Os horários deveriam seguir os praticados para a enfermagem (turnos de 8 horas) facilitando, assim, o necessário refrescamento das equipas médicas.
Os doentes ficam tempo a mais nas urgências, do momento da triagem até ao seu destino.O ritmo elevado da procura deveria implicar uma forte capacidade organizativa dos serviços, para que não se registassem tempos mortos no percurso do doente e uma excessiva acumulação de pessoas (doentes e acompanhantes). O que acontece é geralmente o contrário: a primeira observação médica demora muito tempo (por vezes várias horas de espera), mas o que se segue, aguardando exames ou procedimentos técnicos, parece ser sempre um tempo excessivo e não facilmente explicável. E depois sucede-se uma nova observação médica que pode tardar. Há estudos que tentam perceber estes estrangulamentos e estes tempos excessivos e propõem soluções que acabam por melhorar os tempos de resposta e reduzem a pletora de pessoas nas urgências.
O SO acaba por ser mais do que uma sala de observações, onde se estabiliza o doente e se aguarda a sua evolução para decisão posterior de internamento ou alta. Aí encontramos muitos doentes já com decisão de internamento, mas para os quais se aguarda ainda a disponibilidade de cama, o que muitas vezes só acontece na manhã seguinte ou alguns dias depois. Vão-se assim acumulando, nalguns hospitais, dezenas de doentes em más condições de higiene e conforto e ainda sem um diagnóstico diferenciado e uma terapêutica instituída, às vezes em risco de sobrevivência. Para solucionar tudo isto precisamos de mais organização e, sobretudo, de mais disciplina.
As urgências têm ainda um outro problema, que resulta dos anteriores: os médicos do quadro não chegam para preencher todas as equipas e os serviços vêm-se na contingência de ter que contratar profissionais a empresas de trabalho temporário ou em regime de prestação de serviços, oriundos de outros hospitais ou da especialidade de medicina geral e familiar. Estas contratações, mais as horas extraordinárias sempre a aumentar, constituem um autêntico flagelo sistémico para o SNS: jovens médicos não aceitam lugares em concursos públicos, não vão para as regiões carenciadas e preferem trabalhar à hora nas urgências; os médicos de cada hospital arranjam acumulações nas urgências de outros hospitais, afetando assim a disponibilidade no seu; alguns médicos de família encontram também nas urgências hospitalares uma forma de aumentar os seus rendimentos e aceitam cargas horárias que põem em causa a sua dedicação e a sua disponibilidade perante os seus utentes, contribuindo assim para a criação de um círculo vicioso lamentável: menos tempo para ver os doentes em medicina geral e familiar, mais doentes para ver nas urgências, mais rendimento. Por outro lado, e a agravar esta situação, só muito raramente há internamentos programados em serviços de medicina interna (97 a 99% fazem-se pela urgência), fruto da impossibilidade de se definir a montante e no domicílio do doente a sua necessidade de internamento, de forma articulada e multidisciplinar. O doente tem sempre que passar pelo serviço de urgência, o que é mau e desumano para muitos doentes e péssimo para evitar a hipertrofia do serviço.
Importará aqui referir, positivamente, o advento da hospitalização domiciliária há dois ou três anos atrás e que o documento também assinala. Esta tipologia de serviço permite substituir o internamento no hospital pelo internamento na casa do doente, com múltiplas vantagens: saída mais rápida dos serviços de urgência (nalgumas situações), menos tempo de internamento hospitalar (ficando apenas os dias correspondentes a cuidados de mais intensidade ou dependência clínica), menores riscos de infeção, alta clínica mais célere e com melhores resultados, e mais disponibilidade das camas hospitalares para doentes mais graves.
Seria oportuno que os colégios de especialidade que agora decidiram elaborar um documento sobre a organização das urgências alargasse a sua análise também a estas questões, para podermos contar, efetivamente, com eles e com a Ordem, para uma reforma sustentável desses serviços. O tempo é o ideal, no limiar de um novo governo, agora com maioria absoluta e mais espaço político para fazer as reformas do SNS de que tanto precisamos.
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ÍNDICE DE RISCO DA SARS –CoV – 2 (106ª semana: 6 a 12 de março de 2022)*
O Índice de risco voltou a subir depois de uma descida consecutiva verificada nas últimas 5 semanas. As subidas registaram-se na percentagem da positividade dos testes realizados (+65%) e no número de novos casos (+16%), o que representa um recrudescimento na expansão do vírus entre a população portuguesa. Em sentido contrário, registamos descidas significativas no número médio diário de óbitos (-22%), na existência média de doentes em cuidados intensivos (-20%) e na existência média de doentes internados (-12%). Ou seja, expansão do vírus e aparente redução da sua gravidade. Importa, todavia, acrescentar que há sempre um intervalo temporal entre a o aumento de casos e o aumento de internamentos e óbitos, aumentando estes apenas algumas semanas depois. Aguardemos.
. ÍNDICE: 1.896231
. TENDÊNCIA: subida (+10,35%)
. COR DO SEMÁFORO: amarelo
. DIMENSÃO MELHOR: nº de doentes em UCI
. DIMENSÃO PIOR: positividade dos testes
*Estimativa com base nos dados conhecidos até 6ª feira (11 de março)
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.